terça-feira, 24 de agosto de 2010

Um dia atrás do rei Emanuel

Quatro da tarde. Área de serviço de Santarém. Apesar do pedido - "sejam pontuais que ele nunca se atrasa" -, passam 15 minutos da hora marcada. É uma vez sem regra. O telefone toca e, do outro lado, uma das bailarinas diz-nos que Emanuel "foi lavar o carro". Está explicado. Um café, umas águas, um cigarro, e lá aparece, ao volante de um Mercedes topo de gama, o homem do dia. Estamos prontos para a viagem que nos vai levar a Argeriz, Trás-os-Montes, onde o autor de um hino chamado "Pimba, Pimba" vai brilhar perante o seu público.

Emanuel viaja quase sempre sozinho. Diz que ganha tempo para pensar, essa coisa tão escassa na "vertigem dos dias" que correm. Não são meras reflexões sobre a vida, é trabalho: "Componho muito mentalmente, depois agarro num teclado ou numa viola e faço a música", explica-nos sem tirar os olhos da estrada. Por agora veste roupa desportiva - calças de ganga e pólo -, mas quem entra no seu carro dificilmente deixa de reparar nos dois casacos pendurados na parte de trás. Saltam à vista pelas cores fortes e brilhantes, vermelhos e azuis de cetim. Artista popular é assim, vai para o palco impecavelmente engomado. E usa cores que combinam com os projectores.

Pimba

Existe quase um mito de que Emanuel é um homem da música clássica que um dia decidiu aventurar-se na canção popular brejeira. Ele próprio confessa nunca ter ponderado uma carreira assim. Começou por dar aulas de música em Odivelas e rapidamente se tornou o director da escola. É daquelas pessoas que transpiram confiança a cada palavra: "Comecei por tocar viola e piano. Mas também já toquei bateria. Houve uma altura que dirigia grupos de baile, era eu que fazia as pautas para a banda. Não apenas da guitarra, mas de todos os instrumentos."

Na altura, Américo Monteiro - assim se chama Emanuel - acumulava funções como músico de bar de hotel. "Um repertório contemporâneo, Pink Floyd, Elton John..." Até ao dia em que quis ser cantor. A decisão foi simples: "Queria ter um projecto meu e era preciso alguém para a voz. Acabei por ficar eu, porque não?" Desses tempos, já pouco resta: hoje, o staff de Emanuel são 25 pessoas, entre músicos bailarinos e técnicos. E, embora a banda tenha sido renovada há pouco tempo, é raro ele mexer na equipa. "A excepção são as bailarinas", conta. "Raramente são as mesmas. Não sei se será por ciúme dos namorados. Talvez eles não gostem de as ver de mini-saia em palco."

A conversa corre solta. Não há música dentro do carro, mas fala-se em jazz e música popular, embalados pelos toques polifónicos da consola do pequeno Emanuel, um dos seus dois filhos gémeos, que hoje acompanha o pai. O resto dos familiares ficaram na quinta do Ribatejo, onde vivem. É raro irem aos concertos do patriarca. "Costumo dizer que sou um operário da música. E um operário, seja ele mecânico ou pedreiro, não leva a mulher para o trabalho." Talvez aqui entrem as fãs que se acotovelam por um beijo e um autógrafo, nas muitas horas que se seguem aos espectáculos. Ossos do ofício, garante ele. Diz que nunca foi conquistador nem mulherengo, mas confessa que, no passado, antes de ser casado, "encarava a estrada de outra forma".

Claro que as fãs têm um papel decisivo na vida do artista. Seja as que gritam pelo seu charme na fila da frente, seja as milhares que lhe escrevem cartas. "Aprendi muito a ler as minhas fãs. Diziam--me de tudo. Houve quem me pedisse dinheiro emprestado ou confessasse nunca ter conseguido atingir um orgasmo."

Rapaziada vamos dançar

É tempo de fazer uma pausa no caminho. Emanuel não larga o telemóvel: "O palco é de fácil acesso?", pergunta ao seu road-manager, a trabalhar desde essa manhã o recinto do espectáculo. Quando Emanuel lá chegar, tudo deverá estar pronto. "Dantes não era assim, agora basta-me cantar uma música para ver como está o som. Vou jantar, actuo e levam-me ao hotel."

Na área de serviço de Santo Tirso, um grupo de jovens - que não aparenta ter mais de vinte anos - reconhece o músico e desata a cantar o "Pimba, Pimba". Ele reage tímido à abordagem, mas acaba por tirar uma fotografia, distribuir dois ou três beijos e assinar uma camisola. "Foi uma música que fiz há 15 anos, nessa altura estas miúdas nem deviam ser nascidas. É o poder da música."

Quem fala com Emanuel pela primeira vez dificilmente deixa de sentir uma energia positiva. Há um lado qualquer prosaico na sua postura, bem explícito nas metáforas que utiliza frequentemente - e nas frases que roubou a Kant. Sim, o filósofo alemão. "Ele dizia que há muitas verdades e diferentes realidades. Esta é a minha verdade, não tenho problemas em ser pimba."

Não tem problemas e defende-o com unhas e dentes. Voltamos à conversa do jazz, talvez a sua maior antítese, coisa de elite, pretensiosa até. E voltam as metáforas: "A canção é como uma mulher, se for lindíssima não precisa de artefactos. A qualidade está na sua essência. Uma música simples será sempre mais difícil de compor do que uma coisa complexa." Adiante.

Emigrantes e reformados

Como para qualquer artista popular, o mês de Agosto é dos mais fortes na agenda de Emanuel. Esqueçamos as grandes cidades: no Interior, nas aldeias e vilas desertas, a capacidade de mobilização é notável. Argeriz é um bom exemplo: um palco montado num largo de beira de estrada, meia dúzia e casas e uma densidade populacional pouco digna de registo. Ele contrapõe, à chegada: "Os meus espectáculos têm uma média de 10 mil pessoas." E se por agora, oito da noite, o cenário é desolador, o número multiplicar-se-á rapidamente à medida que se aproxima a hora do concerto.

Atrás do palco há um lar de terceira idade. É aqui que funciona o camarim do artista, muito bem recebido por funcionários e idosos. Deixaram-lhe uma mesa de frutas, uma cartolina cor-de- -rosa com versos simpáticos e uma jarro de flores pousado sobre uma toalha de renda. Ele retribui pouco antes de subir ao palco: mais beijos e fotografias para todos, antes de começar a aquecer a voz. "Meu amor, vem ter comigo", trauteia enquanto ao lado, num pequeno camarim improvisado, quatro imponentes bailarinas se maquilham e espalham creme de brilhantes na barriga.

Está tudo a postos: o road-manager abre caminho na escuridão com uma lanterna, que aponta para uma passadeira vermelha. São 50 metros de caminho ensurdecedor com os gritos da população. Emanuel estava certo: a praça tem milhares de pessoas, há carros estacionados dos dois lados da nacional e falta pouco para a GNR fechar a estrada. Já no palco, ainda temos tempo para uma última pergunta: nervoso? "Nada disso, são muitos anos a virar frangos."

Jornal i, 09/08/2010
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