PRIMEIRO é a música - ou, melhor, o som - que entra pelo recinto adentro, poderoso, de rompante, vindo das profundezas da bateria e das entranhas do baixo, mal as luzes se acendem colorindo de todas as cores o fumo denso que invade o palco. Como se o paredão de uma barragem cedesse, aqui, à pressão da expectativa acumulada pelo público.
Logo a seguir, estridente na mesma medida, como uma torrente, é o crescendo dos gritos e dos assobios de centenas de pessoas, milhares talvez, sobretudo mulheres e crianças, muitas crianças, os braços no ar balanceando, ansiosos todos pela festa que, agora sim, vai começar.
Entram as teclas, entra a guitarra, entra também o acordeão mais as duas bailarinas. E, quando chega, finalmente, a vez de entrar o artista, as palmas que enchem a noite não são só para o receber, são mais para o acompanhar nos versos que todos sabem de cor e cantam com ele: «Rapazes da vida airada/ oiçam bem com atenção/ todos temos o dever/ de dar às nossas mulheres/ muito carinho e afeição./ São as mais lindas do mundo/ donas do nosso coração./ Se somos meigos para elas/ dão-nos tudo, tudo, tudo/ com toda a dedicação» É o delírio entre a rapaziada. Gritos e mais gritos e mais assobios. E depois, todos a repetirem, em coro: «E se elas querem um abraço ou um beijinho/ nós, pimba, nós, pimba!/ E se elas querem muito amor, muito carinho/ nós, pimba, nós, pimba!»
Os holofotes percorrem agora a multidão aos saltos, frenética, como se andassem à caça daqueles, raros, que conseguem ouvir e ficar quietos, muito parados. É preciso contagiá-los e não faltam, para tanto, as imagens no ecrã-gigante, ao lado do palco, ampliando sem cessar os pulos e os gritos das raparigas e das mulheres que se apinham à frente do artista, olhos presos aos seus olhos azuis, extasiadas pela voz suave e macia e pelo «romântico» da sua figura. Tem um certo ar de Clint Eastwood, é verdade, alto, esguio, seco, as «entradas» que o cabelo louro cortado curto não pretende disfarçar. «Toda a gente, vamos embora, estão todos connosco, ou não?», pergunta o cantor, calças pretas e casaco vermelho. «Aí atrás, na encosta, vá lá, quero toda a gente com os bracinhos no ar, as palminhas por cima da cabeça, toda a gente!» A batida é forte, sincopada, e o pó sobe no ar à medida que dezenas de pares rodopiam e pulam, onde há espaço para isso, por entre a assistência. «Lindo! Magnífico! Vamos incendiar isto!», comenta o artista. Cheira a um misto de arraial e de vindimas. E o coro é geral: «E se elas querem um encosto à maneira/ nós, pimba, nós, pimba!/ E se elas querem à noitinha brincadeira/ nós, pimba, nós, pimba!» Emanuel, simplesmente, o genuíno, e poderia ficar tudo dito, sem precisão de mais nada.
Emanuel tinha vindo de Pinela, no distrito de Bragança, na véspera, e actuava agora em Modelos (os naturais pronunciam «mudélus»), um modesto lugar da freguesia de Penamaior, no concelho de Paços de Ferreira. Mais concretamente, a cerca de cinco quilómetros dali, serra acima, no santuário de Nossa Senhora do Pilar, uma capela solitária erguida, há um século precisamente, no topo do cabeço mais alto da terra, paredes meias com as instalações da Estação de Radar nº 2, da Força Aérea Portuguesa. No local, há também, desgarrada, uma estátua a Cristo-Rei, miniatura da de Almada, sobre um pedestal de granito, com a inscrição: «1140-1640-1940 - Vinde a Mim Todos».
Hoje o espectáculo era ali mas poderia muito bem ser em montes de outros sítios, em terras que têm com Modelos no mínimo dois pontos em comum: não terem, no geral, direito ao nome no mapa e terem querido Emanuel e a sua banda para animar as festas de cada uma. Sendim, em Miranda do Douro, Corga do Lourão, em Santa Maria da Feira, Ribolhos, em Castro d'Aire, Mosteiro, em Sandim, Souto, no Sabugal, ou Fonte Longa, em Carrazeda de Ansiães, para citar só alguns exemplos. É Agosto e, de norte a sul de Portugal, parece que não há terra que não esteja em festa.
Todos os anos, em Penamaior, um dos oito lugares da freguesia assume, perante os outros, a responsabilidade de realizar, a 15 de Agosto, a romaria e a festa que atraem ao santuário de Nossa Senhora do Pilar alguns milhares de fiéis e meia dúzia de feirantes. Calhou às gentes de Modelos, desta vez. A festa não exige muito: contrata-se o artista pretendido, com a antecedência devida para evitar sobressaltos, e vão-se pedindo uns tostões, aqui e ali, ao longo do ano, para satisfazer a verba acordada mais o custo das «descargas» de fogo (entre 300 a 400 contos), sempre fundamentais nestas circunstâncias.
Raramente a contratação do artista é feita directamente com o próprio. Há agentes especializados que se encarregam da «démarche», sempre de acordo com os orçamentos de cada lugar. «Quem quiser o Emanuel, um verdadeiro campeão de vendas, tem de o contratar com um ano de antecedência», explica Alcides Seixas, reformado da RDP e empresário artístico especialmente conhecido nos meios da música mais popular. «No caso dele, há duas hipóteses: ou actua com a banda inteira, e a coisa fica por perto dos mil contos, ou só com as bailarinas e com 'playback' instrumental, e então anda à volta dos 700, mais coisa menos coisa...» Resta uma terceira fórmula, a mais cara e, por isso mesmo - porque os orçamentos para as festas nunca são alargados demais - a menos utilizada: «Trazer as Bombocas (um trio - uma loira, uma ruiva e uma morena - criado o ano passado e produzido pelo próprio Emanuel, à sua própria imagem, antes da moda das 'girls band' que agora grassa por aí, e especializado na versão feminina da sua própria música) para fazerem a primeira parte», explica o empresário. O «luxo», diz ele, pode custar mais de 1300 contos.
Pode parecer muito dinheiro, por hora e meia de espectáculo, mas tudo é função, afinal, da importância que cada lugarejo deposita nos festejos que organiza e exibe perante os vizinhos. Fonte Longa, por exemplo, com pouco mais de 350 habitantes durante o ano (a população triplica em Agosto, com o regresso à terra da maioria dos filhos emigrados) não tinha festa nenhuma até há cinco anos. «Há muito tempo, só os mais velhos é que se lembram, faziam-se aqui todos os anos as festas de Santa Filomena. Mas desde que veio para cá o padre Fernando, há mais de 40 anos, nunca mais houve festa nenhuma...», conta José Joaquim da Silva, de 27 anos, o presidente da Junta de Freguesia, fruticultor como a maioria dos conterrâneos.
Cansados de tanto marasmo e conservadorismo, os jovens da aldeia decidiram, há cinco anos, fazer uma «revolução» na terra: de uma assentada só, «marimbámo-nos no padre, inscrevemo-nos nos cadernos eleitorais - muitos votaram pela primeira vez e em si próprios -, ganhámos as eleições desse ano e corremos com a velharia que enchia a Junta e não fazia nada pela aldeia. O padre não nos deixou dar um nome de um santo à festa. Paciência. Passámos a chamá-la a Festa da Maçã, que é a nossa maior produção e, por cada ano que passa, a festa está cada vez maior e melhor, essa é que é essa...», conta o autarca, a malta nova à sua volta, tudo a rir.
O ano passado, uma hora antes do início do número forte da festa - o espectáculo com o artista contratado - apanharam um susto de todo o tamanho. É ainda o autarca que conta: «Tínhamos contratado o Quim Barreiros. Pediu 960 contos, só queria notas, nada de cheques. Chegou aqui com os músicos e entregámos-lhe tudo o que tínhamos conseguido reunir, 950 contos, precisamente. O tipo contou as notas, uma a uma, e recusou-se a começar enquanto o dinheirinho não estivesse todo na sua mão. Foi preciso um de nós abrir a carteira e passar-lhe os 10 contos que faltavam, veja bem, para o espectáculo começar. Nunca mais cá há-de pôr os pés, esse malandro! É que há pimbas e pimbas, está a compreender?»
Emanuel, o genuíno, o verdadeiro «pai» da chamada música pimba («Pimba, pimba», o segundo grande êxito da sua carreira, depois do sucesso de «Rapaziada», no ano anterior, data do Verão de 1995), não é homem para ficar vergado ao peso do rótulo que lhe quiseram colar. «Sou um homem sóbrio, mas com ideias próprias e bem definidas. Não sei se são melhores ou piores do que as outras, sei que são as minhas», diz ele. «E, com respeito ao que é pimba, uma expressão que só ganha sentido em função do contexto em que se insere, a ideia que impera creio que é a minha.»
Sendo mais específico, o artista e campeão de vendas (mais de 150 mil cassetes e de 10 mil CD vendidos o ano passado, e mais de 100 mil cassetes já vendidas, desde fins de Junho, do seu êxito deste ano, o «Vem bailar o tic-tic») diz reconhecer a existência de três critérios para definir o que é pimba, musicalmente falando. «Para uns, é música ordinária, para outros, música de má qualidade, para outros, música ligeira e popular, ou a fusão das duas coisas», sustenta, no final de hora e meia de espectáculo e de mais de uma hora de autógrafos durante a qual os seus assistentes despacham, entre as fãs, com toda a facilidade cem contos de cassetes, «posters» e «t-shirts». «Ora bem, música ligeira e música popular não é um título, não é um nome que defina um género, à semelhança do jazz, do rock ou do blues. Portanto, se quiserem usar o pimba como um adjectivo para definir ligeira e popular, então pimba serve, como serviria Maria ou Manel ou outro rótulo qualquer...»
E o facto de «haver ainda pessoas» que insistem em usar a expressão com sentido pejorativo também não o preocupa. «Não me preocupa porque eu conheço a verdade, e a verdade está aqui, à frente do palco, de terra em terra: campeão de vendas, campeão de assistência. Sabe porquê? Porque artista é o que consegue transmitir emoções. E o público sente o que canto, por isso canta de cor as minhas cantigas.» Diz sentir que captou já, praticamente, todos os sectores da sociedade portuguesa. Menos o elitista, seguramente. «Mas acha que me devo preocupar com pessoas que pensam que o mundo começa na 24 de Julho e acaba no CCB?»
Américo Pinto da Silva Monteiro, de seu verdadeiro nome, nasceu em 25 de Março de 1957, em Covas do Douro, o mais novo de três irmãos. Veio cedo para Lisboa, para casa de familiares, e foi aqui, ao mesmo tempo que começava a trabalhar, que fez os seus estudos, inclusive os de guitarra clássica. Foi professor do mesmo instrumento, dos 20 aos 30 anos, mesmo depois de ter começado a ganhar os primeiros tostões com a música, tocando, ao final da tarde, «música internacional, de todo o género, nos hotéis da linha do Estoril». Foi, diz ele, a sua «grande escola, o palco em que verdadeiramente amadureci». Profundamente influenciado pela música popular que, enquanto jovem, foi ouvindo nos bailaricos da sua aldeia e na faina das vindimas em que o povo se ocupava - a concertina e o acordeão aliviavam o esforço dos homens, os enormes e pesados cestos à cabeça, encostas acima e abaixo -, desde cedo se serviu do genuíno dessas raízes para imprimir um cunho muito próprio às suas composições.
Quando, aos 30 anos, abriu em Lisboa o seu primeiro estúdio de gravação, a qualidade do seu trabalho musical já era sobejamente conhecida no meio. Marco Paulo, por exemplo, recorreu a ele para gravar «Joana», o maior êxito da sua carreira depois do «Eu tenho dois amores». Hoje, do Estúdio de Gravação A.M., que possui na Pontinha, saem uma média de sete, oito álbuns por ano - aparte o seu próprio e o das Bombocas - de outros tantos artistas. «Se eu fosse 50 Emanuéis, tinha trabalho para eles todos», diz ele. «Só faço 20 por cento do que me pedem para fazer. Não faço mais porque não quero, também preciso de dormir...»
Depois de cinco anos consecutivos de êxitos, Emanuel, um caso raro de comunicabilidade, apresenta-se, este Verão, com uma banda completamente renovada e um equipamento, de som e de estrada, novo mas, reconhece, subdimensionado. «Já fizemos espectáculos para mais de 20 mil pessoas, e a verdade é que não estava à espera disso e não tenho som para tanto!» Quanto à possibilidade de a fórmula que o tornou famoso estar gasta, ou em vias disso, o cantor diz não estar preocupado. «Pelo contrário. Estou a vender, este ano, quase o dobro do ano passado. Sou, por outro lado, talvez o artista mais polivalente no meio da música ligeira e popular. E sou um homem que gosta de gerir os seus recursos. E sei, garanto, que tenho suficientes para continuar a conhecer o sucesso nos próximos cinco anos.»
Vaidade? Nada disso. Não é o seu estilo. Antes a certeza, medida dia a dia, de festa em festa, frente ao palco, de que o povo gosta de cantar e de dançar a sua música. E, como diz a letra de uma delas, «se gostas do bombom, toma, toma/ prova porque é bom, toma, toma»...
Fernando Gaspar / Expresso, 22/08/1998
imagem - capa da Revista Pimba