segunda-feira, 30 de agosto de 2010
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Um dia atrás do rei Emanuel
Quatro da tarde. Área de serviço de Santarém. Apesar do pedido - "sejam pontuais que ele nunca se atrasa" -, passam 15 minutos da hora marcada. É uma vez sem regra. O telefone toca e, do outro lado, uma das bailarinas diz-nos que Emanuel "foi lavar o carro". Está explicado. Um café, umas águas, um cigarro, e lá aparece, ao volante de um Mercedes topo de gama, o homem do dia. Estamos prontos para a viagem que nos vai levar a Argeriz, Trás-os-Montes, onde o autor de um hino chamado "Pimba, Pimba" vai brilhar perante o seu público.
Emanuel viaja quase sempre sozinho. Diz que ganha tempo para pensar, essa coisa tão escassa na "vertigem dos dias" que correm. Não são meras reflexões sobre a vida, é trabalho: "Componho muito mentalmente, depois agarro num teclado ou numa viola e faço a música", explica-nos sem tirar os olhos da estrada. Por agora veste roupa desportiva - calças de ganga e pólo -, mas quem entra no seu carro dificilmente deixa de reparar nos dois casacos pendurados na parte de trás. Saltam à vista pelas cores fortes e brilhantes, vermelhos e azuis de cetim. Artista popular é assim, vai para o palco impecavelmente engomado. E usa cores que combinam com os projectores.
Pimba
Existe quase um mito de que Emanuel é um homem da música clássica que um dia decidiu aventurar-se na canção popular brejeira. Ele próprio confessa nunca ter ponderado uma carreira assim. Começou por dar aulas de música em Odivelas e rapidamente se tornou o director da escola. É daquelas pessoas que transpiram confiança a cada palavra: "Comecei por tocar viola e piano. Mas também já toquei bateria. Houve uma altura que dirigia grupos de baile, era eu que fazia as pautas para a banda. Não apenas da guitarra, mas de todos os instrumentos."
Na altura, Américo Monteiro - assim se chama Emanuel - acumulava funções como músico de bar de hotel. "Um repertório contemporâneo, Pink Floyd, Elton John..." Até ao dia em que quis ser cantor. A decisão foi simples: "Queria ter um projecto meu e era preciso alguém para a voz. Acabei por ficar eu, porque não?" Desses tempos, já pouco resta: hoje, o staff de Emanuel são 25 pessoas, entre músicos bailarinos e técnicos. E, embora a banda tenha sido renovada há pouco tempo, é raro ele mexer na equipa. "A excepção são as bailarinas", conta. "Raramente são as mesmas. Não sei se será por ciúme dos namorados. Talvez eles não gostem de as ver de mini-saia em palco."
A conversa corre solta. Não há música dentro do carro, mas fala-se em jazz e música popular, embalados pelos toques polifónicos da consola do pequeno Emanuel, um dos seus dois filhos gémeos, que hoje acompanha o pai. O resto dos familiares ficaram na quinta do Ribatejo, onde vivem. É raro irem aos concertos do patriarca. "Costumo dizer que sou um operário da música. E um operário, seja ele mecânico ou pedreiro, não leva a mulher para o trabalho." Talvez aqui entrem as fãs que se acotovelam por um beijo e um autógrafo, nas muitas horas que se seguem aos espectáculos. Ossos do ofício, garante ele. Diz que nunca foi conquistador nem mulherengo, mas confessa que, no passado, antes de ser casado, "encarava a estrada de outra forma".
Claro que as fãs têm um papel decisivo na vida do artista. Seja as que gritam pelo seu charme na fila da frente, seja as milhares que lhe escrevem cartas. "Aprendi muito a ler as minhas fãs. Diziam--me de tudo. Houve quem me pedisse dinheiro emprestado ou confessasse nunca ter conseguido atingir um orgasmo."
Rapaziada vamos dançar
É tempo de fazer uma pausa no caminho. Emanuel não larga o telemóvel: "O palco é de fácil acesso?", pergunta ao seu road-manager, a trabalhar desde essa manhã o recinto do espectáculo. Quando Emanuel lá chegar, tudo deverá estar pronto. "Dantes não era assim, agora basta-me cantar uma música para ver como está o som. Vou jantar, actuo e levam-me ao hotel."
Na área de serviço de Santo Tirso, um grupo de jovens - que não aparenta ter mais de vinte anos - reconhece o músico e desata a cantar o "Pimba, Pimba". Ele reage tímido à abordagem, mas acaba por tirar uma fotografia, distribuir dois ou três beijos e assinar uma camisola. "Foi uma música que fiz há 15 anos, nessa altura estas miúdas nem deviam ser nascidas. É o poder da música."
Quem fala com Emanuel pela primeira vez dificilmente deixa de sentir uma energia positiva. Há um lado qualquer prosaico na sua postura, bem explícito nas metáforas que utiliza frequentemente - e nas frases que roubou a Kant. Sim, o filósofo alemão. "Ele dizia que há muitas verdades e diferentes realidades. Esta é a minha verdade, não tenho problemas em ser pimba."
Não tem problemas e defende-o com unhas e dentes. Voltamos à conversa do jazz, talvez a sua maior antítese, coisa de elite, pretensiosa até. E voltam as metáforas: "A canção é como uma mulher, se for lindíssima não precisa de artefactos. A qualidade está na sua essência. Uma música simples será sempre mais difícil de compor do que uma coisa complexa." Adiante.
Emigrantes e reformados
Como para qualquer artista popular, o mês de Agosto é dos mais fortes na agenda de Emanuel. Esqueçamos as grandes cidades: no Interior, nas aldeias e vilas desertas, a capacidade de mobilização é notável. Argeriz é um bom exemplo: um palco montado num largo de beira de estrada, meia dúzia e casas e uma densidade populacional pouco digna de registo. Ele contrapõe, à chegada: "Os meus espectáculos têm uma média de 10 mil pessoas." E se por agora, oito da noite, o cenário é desolador, o número multiplicar-se-á rapidamente à medida que se aproxima a hora do concerto.
Atrás do palco há um lar de terceira idade. É aqui que funciona o camarim do artista, muito bem recebido por funcionários e idosos. Deixaram-lhe uma mesa de frutas, uma cartolina cor-de- -rosa com versos simpáticos e uma jarro de flores pousado sobre uma toalha de renda. Ele retribui pouco antes de subir ao palco: mais beijos e fotografias para todos, antes de começar a aquecer a voz. "Meu amor, vem ter comigo", trauteia enquanto ao lado, num pequeno camarim improvisado, quatro imponentes bailarinas se maquilham e espalham creme de brilhantes na barriga.
Está tudo a postos: o road-manager abre caminho na escuridão com uma lanterna, que aponta para uma passadeira vermelha. São 50 metros de caminho ensurdecedor com os gritos da população. Emanuel estava certo: a praça tem milhares de pessoas, há carros estacionados dos dois lados da nacional e falta pouco para a GNR fechar a estrada. Já no palco, ainda temos tempo para uma última pergunta: nervoso? "Nada disso, são muitos anos a virar frangos."
Jornal i, 09/08/2010
artigo com video
Emanuel viaja quase sempre sozinho. Diz que ganha tempo para pensar, essa coisa tão escassa na "vertigem dos dias" que correm. Não são meras reflexões sobre a vida, é trabalho: "Componho muito mentalmente, depois agarro num teclado ou numa viola e faço a música", explica-nos sem tirar os olhos da estrada. Por agora veste roupa desportiva - calças de ganga e pólo -, mas quem entra no seu carro dificilmente deixa de reparar nos dois casacos pendurados na parte de trás. Saltam à vista pelas cores fortes e brilhantes, vermelhos e azuis de cetim. Artista popular é assim, vai para o palco impecavelmente engomado. E usa cores que combinam com os projectores.
Pimba
Existe quase um mito de que Emanuel é um homem da música clássica que um dia decidiu aventurar-se na canção popular brejeira. Ele próprio confessa nunca ter ponderado uma carreira assim. Começou por dar aulas de música em Odivelas e rapidamente se tornou o director da escola. É daquelas pessoas que transpiram confiança a cada palavra: "Comecei por tocar viola e piano. Mas também já toquei bateria. Houve uma altura que dirigia grupos de baile, era eu que fazia as pautas para a banda. Não apenas da guitarra, mas de todos os instrumentos."
Na altura, Américo Monteiro - assim se chama Emanuel - acumulava funções como músico de bar de hotel. "Um repertório contemporâneo, Pink Floyd, Elton John..." Até ao dia em que quis ser cantor. A decisão foi simples: "Queria ter um projecto meu e era preciso alguém para a voz. Acabei por ficar eu, porque não?" Desses tempos, já pouco resta: hoje, o staff de Emanuel são 25 pessoas, entre músicos bailarinos e técnicos. E, embora a banda tenha sido renovada há pouco tempo, é raro ele mexer na equipa. "A excepção são as bailarinas", conta. "Raramente são as mesmas. Não sei se será por ciúme dos namorados. Talvez eles não gostem de as ver de mini-saia em palco."
A conversa corre solta. Não há música dentro do carro, mas fala-se em jazz e música popular, embalados pelos toques polifónicos da consola do pequeno Emanuel, um dos seus dois filhos gémeos, que hoje acompanha o pai. O resto dos familiares ficaram na quinta do Ribatejo, onde vivem. É raro irem aos concertos do patriarca. "Costumo dizer que sou um operário da música. E um operário, seja ele mecânico ou pedreiro, não leva a mulher para o trabalho." Talvez aqui entrem as fãs que se acotovelam por um beijo e um autógrafo, nas muitas horas que se seguem aos espectáculos. Ossos do ofício, garante ele. Diz que nunca foi conquistador nem mulherengo, mas confessa que, no passado, antes de ser casado, "encarava a estrada de outra forma".
Claro que as fãs têm um papel decisivo na vida do artista. Seja as que gritam pelo seu charme na fila da frente, seja as milhares que lhe escrevem cartas. "Aprendi muito a ler as minhas fãs. Diziam--me de tudo. Houve quem me pedisse dinheiro emprestado ou confessasse nunca ter conseguido atingir um orgasmo."
Rapaziada vamos dançar
É tempo de fazer uma pausa no caminho. Emanuel não larga o telemóvel: "O palco é de fácil acesso?", pergunta ao seu road-manager, a trabalhar desde essa manhã o recinto do espectáculo. Quando Emanuel lá chegar, tudo deverá estar pronto. "Dantes não era assim, agora basta-me cantar uma música para ver como está o som. Vou jantar, actuo e levam-me ao hotel."
Na área de serviço de Santo Tirso, um grupo de jovens - que não aparenta ter mais de vinte anos - reconhece o músico e desata a cantar o "Pimba, Pimba". Ele reage tímido à abordagem, mas acaba por tirar uma fotografia, distribuir dois ou três beijos e assinar uma camisola. "Foi uma música que fiz há 15 anos, nessa altura estas miúdas nem deviam ser nascidas. É o poder da música."
Quem fala com Emanuel pela primeira vez dificilmente deixa de sentir uma energia positiva. Há um lado qualquer prosaico na sua postura, bem explícito nas metáforas que utiliza frequentemente - e nas frases que roubou a Kant. Sim, o filósofo alemão. "Ele dizia que há muitas verdades e diferentes realidades. Esta é a minha verdade, não tenho problemas em ser pimba."
Não tem problemas e defende-o com unhas e dentes. Voltamos à conversa do jazz, talvez a sua maior antítese, coisa de elite, pretensiosa até. E voltam as metáforas: "A canção é como uma mulher, se for lindíssima não precisa de artefactos. A qualidade está na sua essência. Uma música simples será sempre mais difícil de compor do que uma coisa complexa." Adiante.
Emigrantes e reformados
Como para qualquer artista popular, o mês de Agosto é dos mais fortes na agenda de Emanuel. Esqueçamos as grandes cidades: no Interior, nas aldeias e vilas desertas, a capacidade de mobilização é notável. Argeriz é um bom exemplo: um palco montado num largo de beira de estrada, meia dúzia e casas e uma densidade populacional pouco digna de registo. Ele contrapõe, à chegada: "Os meus espectáculos têm uma média de 10 mil pessoas." E se por agora, oito da noite, o cenário é desolador, o número multiplicar-se-á rapidamente à medida que se aproxima a hora do concerto.
Atrás do palco há um lar de terceira idade. É aqui que funciona o camarim do artista, muito bem recebido por funcionários e idosos. Deixaram-lhe uma mesa de frutas, uma cartolina cor-de- -rosa com versos simpáticos e uma jarro de flores pousado sobre uma toalha de renda. Ele retribui pouco antes de subir ao palco: mais beijos e fotografias para todos, antes de começar a aquecer a voz. "Meu amor, vem ter comigo", trauteia enquanto ao lado, num pequeno camarim improvisado, quatro imponentes bailarinas se maquilham e espalham creme de brilhantes na barriga.
Está tudo a postos: o road-manager abre caminho na escuridão com uma lanterna, que aponta para uma passadeira vermelha. São 50 metros de caminho ensurdecedor com os gritos da população. Emanuel estava certo: a praça tem milhares de pessoas, há carros estacionados dos dois lados da nacional e falta pouco para a GNR fechar a estrada. Já no palco, ainda temos tempo para uma última pergunta: nervoso? "Nada disso, são muitos anos a virar frangos."
Jornal i, 09/08/2010
artigo com video
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Na sombra das luzes da ribalta de Tony Carreira
Poucos reparam neles, pouco iluminados pela ribalta do palco, mas as funções que desempenham são essenciais para que Tony Carreira brilhe e arrebate as plateias
Quando entrar em palco para celebrar os vinte anos da concretização dos ‘Sonhos de Menino’ que nasceram com ele em Armadouro, Pampilhosa da Serra, Tony Carreira não vai estar sozinho. As luzes vão fazer de tudo para iluminar e fazer sobressair o romântico cantor, as palmas a ele vão ser dirigidas e o eco do nome artístico, que escolheu já lá vai o tempo, atingirá honras de atravessar o Pavilhão Atlântico em sonoros vivas.
Tem sido assim ao longo dos anos: a colher os frutos do sucesso, na vida que escolheu dedicar à música portuguesa. Mas o espectáculo existe, e é possível, também ao fundo do palco, em muito graças ao irmão José Antunes, ao compositor Ricardo Landum, ao técnico de som Paulito e a Ana Baptista, uma das vozes do coro – alguns dos elementos de uma equipa de 40 pessoas que trabalha para que nada falhe durante o show. E que, nos concertos de celebração de aniversário, a 14 e 15 de Março, vai estar a torcer para que Tony, que dizem ser “muito perfeccionista e profissional”, brilhe e se supere. Mais uma vez e cada vez mais.
José Antunes está “algures na ternura dos quarenta.” As duas décadas de carreira que Tony agora celebra pertencem-lhe também. Em 1988, rumou a Lisboa com uma missão muito especial: inscrever o irmão mais novo no Prémio Nacional da Música, que acabou por dar a Tony Carreira entrada directa no Festival da Canção, pela mão (e melodia) da canção ‘Uma Noite a teu Lado’ – foi um dos oito seleccionados entre mil participantes. “Convenci-o a gravar e a apresentar-se, mas confesso que acreditava sem acreditar que ele pudesse vencer”, conta José, explicando que as dúvidas se deveram à panóplia “de nomes sonantes” que compunham o leque de participantes. Na ‘ficha técnica’, José Antunes é ‘tour manager’. Na prática é o braço direito (e esquerdo) do irmão, a quem este confia a verificação de que tudo está nos eixos.
“Tenho de cuidar de todas as condições necessárias para ele apresentar os concertos.” Pode ser motorista, contabilista, gestor, organizador, de acordo com o que é a necessidade do momento. A sua empresa, a Dyam, teve nascimento registado em França – desde 1989 que produz concertos de artistas nacionais em países com fortes comunidades emigrantes - mas continua a dar cartas em Portugal desde que José se mudou para terras lusas.
Apesar dos laços de sangue que o unem ao cantor romântico, o irmão de Tony admite que “família só em casa, no trabalho tentamos não misturar.” Embora por vezes seja difícil, confessa quem tocava baixo na banda que teve com o irmão e um primo na adolescência. Porque não seguiu carreira artística?, perguntamos. “Desde cedo percebi que não tinha esse dom”, garante, admitindo mesmo assim as “memórias excelentes” que guarda “desse tempo.”
RICARDO LANDUM
De tempo precisa Ricardo Landum. Para compor. Abana a cabeça à pergunta se os cantores encomendam sentimentos quando lhe pedem para escrever canções. Autor de sucessos como ‘Pisca Pisca’, ‘Mãe Querida’ e ‘Conquistador’ é, além de um dos compositores mais conhecidos na praça lusa, amigo de Tony. “Tenho um coração muito grande em termos musicais, para mim música é música”, reage quando questionamos a diferença de estilos. Foi rockeiro com os TNT e os Da Vinci, também se passeou no sonoro heavy metal e é autor dos maiores sucessos do conhecido ‘cantor de sonhos’. “Encomendam-me canções para um disco, dizem como querem que seja, eu faço de acordo com os desejos de cada um”, explica o artista que escolheu deixar as luzes da ribalta aos 30 anos – hoje tem 47 - em prol do estúdio: “Um refúgio mais criativo.” Quando na próxima semana o esgotado Atlântico entoar mais ou menos afinado as badaladas baladas de Tony Carreira, dificilmente se vai lembrar do homem que, não estando no palco, se encarregou de “encarnar personagens, viver como se fosse elas, transportar romantismo para a vivência do dia-a-dia” enquanto durou o processo criativo de escrever e compor as letras para o amigo de há já vinte anos. Nem vai imaginar (o público) que a maioria das canções foi cúmplice da madrugada, um dos períodos mais fortes da inspiração de Ricardo.
Se Tony Carreira é o cantor dos sonhos, Ricardo é quem os imagina e compõe em forma de canções. “Durante os seis meses que estou a compor eu e o Tony falamos constantemente. Às vezes toco-lhe músicas ao telefone a pedir opinião, outras liga-me ele com uma ideia.” É fácil concretizar as vontades de Carreira? “É, porque já o conheço há muito tempo, devo ser das pessoas que melhor o conhece”, explica Ricardo, “muito observador por natureza.” E saudosista q.b., como confessa. Talvez por isso escreva um diário que também ajuda a inspiração em momentos em que esta teima e tarda a chegar.
Ana Baptista chegou em boa hora à equipa de Tony Carreira, há sete anos e por intermédio de uma amiga. “Estavam a precisar de uma cantora, fiz provas com o director musical e fui escolhida”, conta a corista, 36 anos. No ‘casting’ teve de cantar o refrão de uma música de Tony Carreira e a lembrança solta-lhe o riso. “Fui franca com ele e contei-lhe que não sabia qualquer tema, porque não era o meu género musical nem achava muita piada, mas houve um compromisso de profissionalismo”, conta, desfazendo-se em elogios para com o cantor.
“Tem evoluído imenso, é uma pessoa com grandes ambições, além de ser muito acessível - sempre lhe pedi conselhos e ele sempre me ajudou.” Agora, a ambição de Ana Baptista é dar o passo em frente: também literalmente. Passar para a frente do palco, ser cantora e não corista. Garante que Tony Carreira será convidado de honra do lançamento do disco que quer pôr em prática - “algures entre o funk e a soul, que são as minhas influências principais.” Ana nasceu no Montijo mas cresceu em Lisboa, filha de um pai que tinha também - e de quem herdou - o gosto pela música.
Paulito também tem esse gosto. Embora mais abrangente, tudo o que é som interessa-lhe e é disso que fez profissão: é o técnico de som de Tony Carreira, desde há três anos. O anterior trabalho foi com os manos Anjos, mas desde os 17 anos que manipula mesas de mistura. Tem 33 anos. Sabe de cor que tipo de som gosta o cantor. “Tem de ser muito limpo, porque passa uma mensagem”, conta, acrescentando que não é tudo. “O Tony Carreira dá espaço para inovações, temos toda a motivação para explorar, até porque temos de estar sempre no topo - desde que não haja falhas”, explica Paulito, que poucos minutos antes recebeu um telefonema do cantor de ‘Depois de ti mais nada’ a chamar a atenção para um pormenor (sonoro) que aconteceu no último concerto da banda e que não se podia repetir nos espectáculos de comemoração no Pavilhão Atlântico.
“É muito perfeccionista e diz sempre quando algo não lhe agrada, o que também é importante para o nosso trabalho”, assume Paulito, actualmente responsável pela sonância que chega aos ouvidos do público. “Uma grande responsabilidade”, confessa, admitindo que foi Tony Carreira quem o incentivou a aceitar o lugar de destaque no que ao som diz respeito. “Comecei nos monitores, no som do palco, e estava com receio de aceitar o convite para fazer o som do público, estava muito nervoso no primeiro espectáculo em que mudei de função, na tournée de 2007.” E há uma coisa que também não vai esquecer. “O Tony Carreira disse-me nesta altura: ‘Paulito, acredita em ti que eu fiz o mesmo.’” Pois fez. E resultou.
40 NA EQUIPA
São cerca de 40 os elementos da equipa que acompanha Tony Carreira. “Temos uma relação muito boa entre todos”, diz Ana Baptista. Paulito, técnico de som, concorda. “Quando estamos na estrada é uma animação, ficam sempre histórias para recordar, mesmo a recordar as pequenas falhas nos divertimos mais tarde”, confessa o jovem de 33 anos.
Marta Martins Silva / Correio da Manhã (Correio de Domingo), 09/03/2008
Foto de Duarte Roriz
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Emanuel - Pimba Amor
PRIMEIRO é a música - ou, melhor, o som - que entra pelo recinto adentro, poderoso, de rompante, vindo das profundezas da bateria e das entranhas do baixo, mal as luzes se acendem colorindo de todas as cores o fumo denso que invade o palco. Como se o paredão de uma barragem cedesse, aqui, à pressão da expectativa acumulada pelo público.
Logo a seguir, estridente na mesma medida, como uma torrente, é o crescendo dos gritos e dos assobios de centenas de pessoas, milhares talvez, sobretudo mulheres e crianças, muitas crianças, os braços no ar balanceando, ansiosos todos pela festa que, agora sim, vai começar.
Entram as teclas, entra a guitarra, entra também o acordeão mais as duas bailarinas. E, quando chega, finalmente, a vez de entrar o artista, as palmas que enchem a noite não são só para o receber, são mais para o acompanhar nos versos que todos sabem de cor e cantam com ele: «Rapazes da vida airada/ oiçam bem com atenção/ todos temos o dever/ de dar às nossas mulheres/ muito carinho e afeição./ São as mais lindas do mundo/ donas do nosso coração./ Se somos meigos para elas/ dão-nos tudo, tudo, tudo/ com toda a dedicação» É o delírio entre a rapaziada. Gritos e mais gritos e mais assobios. E depois, todos a repetirem, em coro: «E se elas querem um abraço ou um beijinho/ nós, pimba, nós, pimba!/ E se elas querem muito amor, muito carinho/ nós, pimba, nós, pimba!»
Os holofotes percorrem agora a multidão aos saltos, frenética, como se andassem à caça daqueles, raros, que conseguem ouvir e ficar quietos, muito parados. É preciso contagiá-los e não faltam, para tanto, as imagens no ecrã-gigante, ao lado do palco, ampliando sem cessar os pulos e os gritos das raparigas e das mulheres que se apinham à frente do artista, olhos presos aos seus olhos azuis, extasiadas pela voz suave e macia e pelo «romântico» da sua figura. Tem um certo ar de Clint Eastwood, é verdade, alto, esguio, seco, as «entradas» que o cabelo louro cortado curto não pretende disfarçar. «Toda a gente, vamos embora, estão todos connosco, ou não?», pergunta o cantor, calças pretas e casaco vermelho. «Aí atrás, na encosta, vá lá, quero toda a gente com os bracinhos no ar, as palminhas por cima da cabeça, toda a gente!» A batida é forte, sincopada, e o pó sobe no ar à medida que dezenas de pares rodopiam e pulam, onde há espaço para isso, por entre a assistência. «Lindo! Magnífico! Vamos incendiar isto!», comenta o artista. Cheira a um misto de arraial e de vindimas. E o coro é geral: «E se elas querem um encosto à maneira/ nós, pimba, nós, pimba!/ E se elas querem à noitinha brincadeira/ nós, pimba, nós, pimba!» Emanuel, simplesmente, o genuíno, e poderia ficar tudo dito, sem precisão de mais nada.
Emanuel tinha vindo de Pinela, no distrito de Bragança, na véspera, e actuava agora em Modelos (os naturais pronunciam «mudélus»), um modesto lugar da freguesia de Penamaior, no concelho de Paços de Ferreira. Mais concretamente, a cerca de cinco quilómetros dali, serra acima, no santuário de Nossa Senhora do Pilar, uma capela solitária erguida, há um século precisamente, no topo do cabeço mais alto da terra, paredes meias com as instalações da Estação de Radar nº 2, da Força Aérea Portuguesa. No local, há também, desgarrada, uma estátua a Cristo-Rei, miniatura da de Almada, sobre um pedestal de granito, com a inscrição: «1140-1640-1940 - Vinde a Mim Todos».
Hoje o espectáculo era ali mas poderia muito bem ser em montes de outros sítios, em terras que têm com Modelos no mínimo dois pontos em comum: não terem, no geral, direito ao nome no mapa e terem querido Emanuel e a sua banda para animar as festas de cada uma. Sendim, em Miranda do Douro, Corga do Lourão, em Santa Maria da Feira, Ribolhos, em Castro d'Aire, Mosteiro, em Sandim, Souto, no Sabugal, ou Fonte Longa, em Carrazeda de Ansiães, para citar só alguns exemplos. É Agosto e, de norte a sul de Portugal, parece que não há terra que não esteja em festa.
Todos os anos, em Penamaior, um dos oito lugares da freguesia assume, perante os outros, a responsabilidade de realizar, a 15 de Agosto, a romaria e a festa que atraem ao santuário de Nossa Senhora do Pilar alguns milhares de fiéis e meia dúzia de feirantes. Calhou às gentes de Modelos, desta vez. A festa não exige muito: contrata-se o artista pretendido, com a antecedência devida para evitar sobressaltos, e vão-se pedindo uns tostões, aqui e ali, ao longo do ano, para satisfazer a verba acordada mais o custo das «descargas» de fogo (entre 300 a 400 contos), sempre fundamentais nestas circunstâncias.
Raramente a contratação do artista é feita directamente com o próprio. Há agentes especializados que se encarregam da «démarche», sempre de acordo com os orçamentos de cada lugar. «Quem quiser o Emanuel, um verdadeiro campeão de vendas, tem de o contratar com um ano de antecedência», explica Alcides Seixas, reformado da RDP e empresário artístico especialmente conhecido nos meios da música mais popular. «No caso dele, há duas hipóteses: ou actua com a banda inteira, e a coisa fica por perto dos mil contos, ou só com as bailarinas e com 'playback' instrumental, e então anda à volta dos 700, mais coisa menos coisa...» Resta uma terceira fórmula, a mais cara e, por isso mesmo - porque os orçamentos para as festas nunca são alargados demais - a menos utilizada: «Trazer as Bombocas (um trio - uma loira, uma ruiva e uma morena - criado o ano passado e produzido pelo próprio Emanuel, à sua própria imagem, antes da moda das 'girls band' que agora grassa por aí, e especializado na versão feminina da sua própria música) para fazerem a primeira parte», explica o empresário. O «luxo», diz ele, pode custar mais de 1300 contos.
Pode parecer muito dinheiro, por hora e meia de espectáculo, mas tudo é função, afinal, da importância que cada lugarejo deposita nos festejos que organiza e exibe perante os vizinhos. Fonte Longa, por exemplo, com pouco mais de 350 habitantes durante o ano (a população triplica em Agosto, com o regresso à terra da maioria dos filhos emigrados) não tinha festa nenhuma até há cinco anos. «Há muito tempo, só os mais velhos é que se lembram, faziam-se aqui todos os anos as festas de Santa Filomena. Mas desde que veio para cá o padre Fernando, há mais de 40 anos, nunca mais houve festa nenhuma...», conta José Joaquim da Silva, de 27 anos, o presidente da Junta de Freguesia, fruticultor como a maioria dos conterrâneos.
Cansados de tanto marasmo e conservadorismo, os jovens da aldeia decidiram, há cinco anos, fazer uma «revolução» na terra: de uma assentada só, «marimbámo-nos no padre, inscrevemo-nos nos cadernos eleitorais - muitos votaram pela primeira vez e em si próprios -, ganhámos as eleições desse ano e corremos com a velharia que enchia a Junta e não fazia nada pela aldeia. O padre não nos deixou dar um nome de um santo à festa. Paciência. Passámos a chamá-la a Festa da Maçã, que é a nossa maior produção e, por cada ano que passa, a festa está cada vez maior e melhor, essa é que é essa...», conta o autarca, a malta nova à sua volta, tudo a rir.
O ano passado, uma hora antes do início do número forte da festa - o espectáculo com o artista contratado - apanharam um susto de todo o tamanho. É ainda o autarca que conta: «Tínhamos contratado o Quim Barreiros. Pediu 960 contos, só queria notas, nada de cheques. Chegou aqui com os músicos e entregámos-lhe tudo o que tínhamos conseguido reunir, 950 contos, precisamente. O tipo contou as notas, uma a uma, e recusou-se a começar enquanto o dinheirinho não estivesse todo na sua mão. Foi preciso um de nós abrir a carteira e passar-lhe os 10 contos que faltavam, veja bem, para o espectáculo começar. Nunca mais cá há-de pôr os pés, esse malandro! É que há pimbas e pimbas, está a compreender?»
Emanuel, o genuíno, o verdadeiro «pai» da chamada música pimba («Pimba, pimba», o segundo grande êxito da sua carreira, depois do sucesso de «Rapaziada», no ano anterior, data do Verão de 1995), não é homem para ficar vergado ao peso do rótulo que lhe quiseram colar. «Sou um homem sóbrio, mas com ideias próprias e bem definidas. Não sei se são melhores ou piores do que as outras, sei que são as minhas», diz ele. «E, com respeito ao que é pimba, uma expressão que só ganha sentido em função do contexto em que se insere, a ideia que impera creio que é a minha.»
Sendo mais específico, o artista e campeão de vendas (mais de 150 mil cassetes e de 10 mil CD vendidos o ano passado, e mais de 100 mil cassetes já vendidas, desde fins de Junho, do seu êxito deste ano, o «Vem bailar o tic-tic») diz reconhecer a existência de três critérios para definir o que é pimba, musicalmente falando. «Para uns, é música ordinária, para outros, música de má qualidade, para outros, música ligeira e popular, ou a fusão das duas coisas», sustenta, no final de hora e meia de espectáculo e de mais de uma hora de autógrafos durante a qual os seus assistentes despacham, entre as fãs, com toda a facilidade cem contos de cassetes, «posters» e «t-shirts». «Ora bem, música ligeira e música popular não é um título, não é um nome que defina um género, à semelhança do jazz, do rock ou do blues. Portanto, se quiserem usar o pimba como um adjectivo para definir ligeira e popular, então pimba serve, como serviria Maria ou Manel ou outro rótulo qualquer...»
E o facto de «haver ainda pessoas» que insistem em usar a expressão com sentido pejorativo também não o preocupa. «Não me preocupa porque eu conheço a verdade, e a verdade está aqui, à frente do palco, de terra em terra: campeão de vendas, campeão de assistência. Sabe porquê? Porque artista é o que consegue transmitir emoções. E o público sente o que canto, por isso canta de cor as minhas cantigas.» Diz sentir que captou já, praticamente, todos os sectores da sociedade portuguesa. Menos o elitista, seguramente. «Mas acha que me devo preocupar com pessoas que pensam que o mundo começa na 24 de Julho e acaba no CCB?»
Américo Pinto da Silva Monteiro, de seu verdadeiro nome, nasceu em 25 de Março de 1957, em Covas do Douro, o mais novo de três irmãos. Veio cedo para Lisboa, para casa de familiares, e foi aqui, ao mesmo tempo que começava a trabalhar, que fez os seus estudos, inclusive os de guitarra clássica. Foi professor do mesmo instrumento, dos 20 aos 30 anos, mesmo depois de ter começado a ganhar os primeiros tostões com a música, tocando, ao final da tarde, «música internacional, de todo o género, nos hotéis da linha do Estoril». Foi, diz ele, a sua «grande escola, o palco em que verdadeiramente amadureci». Profundamente influenciado pela música popular que, enquanto jovem, foi ouvindo nos bailaricos da sua aldeia e na faina das vindimas em que o povo se ocupava - a concertina e o acordeão aliviavam o esforço dos homens, os enormes e pesados cestos à cabeça, encostas acima e abaixo -, desde cedo se serviu do genuíno dessas raízes para imprimir um cunho muito próprio às suas composições.
Quando, aos 30 anos, abriu em Lisboa o seu primeiro estúdio de gravação, a qualidade do seu trabalho musical já era sobejamente conhecida no meio. Marco Paulo, por exemplo, recorreu a ele para gravar «Joana», o maior êxito da sua carreira depois do «Eu tenho dois amores». Hoje, do Estúdio de Gravação A.M., que possui na Pontinha, saem uma média de sete, oito álbuns por ano - aparte o seu próprio e o das Bombocas - de outros tantos artistas. «Se eu fosse 50 Emanuéis, tinha trabalho para eles todos», diz ele. «Só faço 20 por cento do que me pedem para fazer. Não faço mais porque não quero, também preciso de dormir...»
Depois de cinco anos consecutivos de êxitos, Emanuel, um caso raro de comunicabilidade, apresenta-se, este Verão, com uma banda completamente renovada e um equipamento, de som e de estrada, novo mas, reconhece, subdimensionado. «Já fizemos espectáculos para mais de 20 mil pessoas, e a verdade é que não estava à espera disso e não tenho som para tanto!» Quanto à possibilidade de a fórmula que o tornou famoso estar gasta, ou em vias disso, o cantor diz não estar preocupado. «Pelo contrário. Estou a vender, este ano, quase o dobro do ano passado. Sou, por outro lado, talvez o artista mais polivalente no meio da música ligeira e popular. E sou um homem que gosta de gerir os seus recursos. E sei, garanto, que tenho suficientes para continuar a conhecer o sucesso nos próximos cinco anos.»
Vaidade? Nada disso. Não é o seu estilo. Antes a certeza, medida dia a dia, de festa em festa, frente ao palco, de que o povo gosta de cantar e de dançar a sua música. E, como diz a letra de uma delas, «se gostas do bombom, toma, toma/ prova porque é bom, toma, toma»...
Fernando Gaspar / Expresso, 22/08/1998
imagem - capa da Revista Pimba
Logo a seguir, estridente na mesma medida, como uma torrente, é o crescendo dos gritos e dos assobios de centenas de pessoas, milhares talvez, sobretudo mulheres e crianças, muitas crianças, os braços no ar balanceando, ansiosos todos pela festa que, agora sim, vai começar.
Entram as teclas, entra a guitarra, entra também o acordeão mais as duas bailarinas. E, quando chega, finalmente, a vez de entrar o artista, as palmas que enchem a noite não são só para o receber, são mais para o acompanhar nos versos que todos sabem de cor e cantam com ele: «Rapazes da vida airada/ oiçam bem com atenção/ todos temos o dever/ de dar às nossas mulheres/ muito carinho e afeição./ São as mais lindas do mundo/ donas do nosso coração./ Se somos meigos para elas/ dão-nos tudo, tudo, tudo/ com toda a dedicação» É o delírio entre a rapaziada. Gritos e mais gritos e mais assobios. E depois, todos a repetirem, em coro: «E se elas querem um abraço ou um beijinho/ nós, pimba, nós, pimba!/ E se elas querem muito amor, muito carinho/ nós, pimba, nós, pimba!»
Os holofotes percorrem agora a multidão aos saltos, frenética, como se andassem à caça daqueles, raros, que conseguem ouvir e ficar quietos, muito parados. É preciso contagiá-los e não faltam, para tanto, as imagens no ecrã-gigante, ao lado do palco, ampliando sem cessar os pulos e os gritos das raparigas e das mulheres que se apinham à frente do artista, olhos presos aos seus olhos azuis, extasiadas pela voz suave e macia e pelo «romântico» da sua figura. Tem um certo ar de Clint Eastwood, é verdade, alto, esguio, seco, as «entradas» que o cabelo louro cortado curto não pretende disfarçar. «Toda a gente, vamos embora, estão todos connosco, ou não?», pergunta o cantor, calças pretas e casaco vermelho. «Aí atrás, na encosta, vá lá, quero toda a gente com os bracinhos no ar, as palminhas por cima da cabeça, toda a gente!» A batida é forte, sincopada, e o pó sobe no ar à medida que dezenas de pares rodopiam e pulam, onde há espaço para isso, por entre a assistência. «Lindo! Magnífico! Vamos incendiar isto!», comenta o artista. Cheira a um misto de arraial e de vindimas. E o coro é geral: «E se elas querem um encosto à maneira/ nós, pimba, nós, pimba!/ E se elas querem à noitinha brincadeira/ nós, pimba, nós, pimba!» Emanuel, simplesmente, o genuíno, e poderia ficar tudo dito, sem precisão de mais nada.
Emanuel tinha vindo de Pinela, no distrito de Bragança, na véspera, e actuava agora em Modelos (os naturais pronunciam «mudélus»), um modesto lugar da freguesia de Penamaior, no concelho de Paços de Ferreira. Mais concretamente, a cerca de cinco quilómetros dali, serra acima, no santuário de Nossa Senhora do Pilar, uma capela solitária erguida, há um século precisamente, no topo do cabeço mais alto da terra, paredes meias com as instalações da Estação de Radar nº 2, da Força Aérea Portuguesa. No local, há também, desgarrada, uma estátua a Cristo-Rei, miniatura da de Almada, sobre um pedestal de granito, com a inscrição: «1140-1640-1940 - Vinde a Mim Todos».
Hoje o espectáculo era ali mas poderia muito bem ser em montes de outros sítios, em terras que têm com Modelos no mínimo dois pontos em comum: não terem, no geral, direito ao nome no mapa e terem querido Emanuel e a sua banda para animar as festas de cada uma. Sendim, em Miranda do Douro, Corga do Lourão, em Santa Maria da Feira, Ribolhos, em Castro d'Aire, Mosteiro, em Sandim, Souto, no Sabugal, ou Fonte Longa, em Carrazeda de Ansiães, para citar só alguns exemplos. É Agosto e, de norte a sul de Portugal, parece que não há terra que não esteja em festa.
Todos os anos, em Penamaior, um dos oito lugares da freguesia assume, perante os outros, a responsabilidade de realizar, a 15 de Agosto, a romaria e a festa que atraem ao santuário de Nossa Senhora do Pilar alguns milhares de fiéis e meia dúzia de feirantes. Calhou às gentes de Modelos, desta vez. A festa não exige muito: contrata-se o artista pretendido, com a antecedência devida para evitar sobressaltos, e vão-se pedindo uns tostões, aqui e ali, ao longo do ano, para satisfazer a verba acordada mais o custo das «descargas» de fogo (entre 300 a 400 contos), sempre fundamentais nestas circunstâncias.
Raramente a contratação do artista é feita directamente com o próprio. Há agentes especializados que se encarregam da «démarche», sempre de acordo com os orçamentos de cada lugar. «Quem quiser o Emanuel, um verdadeiro campeão de vendas, tem de o contratar com um ano de antecedência», explica Alcides Seixas, reformado da RDP e empresário artístico especialmente conhecido nos meios da música mais popular. «No caso dele, há duas hipóteses: ou actua com a banda inteira, e a coisa fica por perto dos mil contos, ou só com as bailarinas e com 'playback' instrumental, e então anda à volta dos 700, mais coisa menos coisa...» Resta uma terceira fórmula, a mais cara e, por isso mesmo - porque os orçamentos para as festas nunca são alargados demais - a menos utilizada: «Trazer as Bombocas (um trio - uma loira, uma ruiva e uma morena - criado o ano passado e produzido pelo próprio Emanuel, à sua própria imagem, antes da moda das 'girls band' que agora grassa por aí, e especializado na versão feminina da sua própria música) para fazerem a primeira parte», explica o empresário. O «luxo», diz ele, pode custar mais de 1300 contos.
Pode parecer muito dinheiro, por hora e meia de espectáculo, mas tudo é função, afinal, da importância que cada lugarejo deposita nos festejos que organiza e exibe perante os vizinhos. Fonte Longa, por exemplo, com pouco mais de 350 habitantes durante o ano (a população triplica em Agosto, com o regresso à terra da maioria dos filhos emigrados) não tinha festa nenhuma até há cinco anos. «Há muito tempo, só os mais velhos é que se lembram, faziam-se aqui todos os anos as festas de Santa Filomena. Mas desde que veio para cá o padre Fernando, há mais de 40 anos, nunca mais houve festa nenhuma...», conta José Joaquim da Silva, de 27 anos, o presidente da Junta de Freguesia, fruticultor como a maioria dos conterrâneos.
Cansados de tanto marasmo e conservadorismo, os jovens da aldeia decidiram, há cinco anos, fazer uma «revolução» na terra: de uma assentada só, «marimbámo-nos no padre, inscrevemo-nos nos cadernos eleitorais - muitos votaram pela primeira vez e em si próprios -, ganhámos as eleições desse ano e corremos com a velharia que enchia a Junta e não fazia nada pela aldeia. O padre não nos deixou dar um nome de um santo à festa. Paciência. Passámos a chamá-la a Festa da Maçã, que é a nossa maior produção e, por cada ano que passa, a festa está cada vez maior e melhor, essa é que é essa...», conta o autarca, a malta nova à sua volta, tudo a rir.
O ano passado, uma hora antes do início do número forte da festa - o espectáculo com o artista contratado - apanharam um susto de todo o tamanho. É ainda o autarca que conta: «Tínhamos contratado o Quim Barreiros. Pediu 960 contos, só queria notas, nada de cheques. Chegou aqui com os músicos e entregámos-lhe tudo o que tínhamos conseguido reunir, 950 contos, precisamente. O tipo contou as notas, uma a uma, e recusou-se a começar enquanto o dinheirinho não estivesse todo na sua mão. Foi preciso um de nós abrir a carteira e passar-lhe os 10 contos que faltavam, veja bem, para o espectáculo começar. Nunca mais cá há-de pôr os pés, esse malandro! É que há pimbas e pimbas, está a compreender?»
Emanuel, o genuíno, o verdadeiro «pai» da chamada música pimba («Pimba, pimba», o segundo grande êxito da sua carreira, depois do sucesso de «Rapaziada», no ano anterior, data do Verão de 1995), não é homem para ficar vergado ao peso do rótulo que lhe quiseram colar. «Sou um homem sóbrio, mas com ideias próprias e bem definidas. Não sei se são melhores ou piores do que as outras, sei que são as minhas», diz ele. «E, com respeito ao que é pimba, uma expressão que só ganha sentido em função do contexto em que se insere, a ideia que impera creio que é a minha.»
Sendo mais específico, o artista e campeão de vendas (mais de 150 mil cassetes e de 10 mil CD vendidos o ano passado, e mais de 100 mil cassetes já vendidas, desde fins de Junho, do seu êxito deste ano, o «Vem bailar o tic-tic») diz reconhecer a existência de três critérios para definir o que é pimba, musicalmente falando. «Para uns, é música ordinária, para outros, música de má qualidade, para outros, música ligeira e popular, ou a fusão das duas coisas», sustenta, no final de hora e meia de espectáculo e de mais de uma hora de autógrafos durante a qual os seus assistentes despacham, entre as fãs, com toda a facilidade cem contos de cassetes, «posters» e «t-shirts». «Ora bem, música ligeira e música popular não é um título, não é um nome que defina um género, à semelhança do jazz, do rock ou do blues. Portanto, se quiserem usar o pimba como um adjectivo para definir ligeira e popular, então pimba serve, como serviria Maria ou Manel ou outro rótulo qualquer...»
E o facto de «haver ainda pessoas» que insistem em usar a expressão com sentido pejorativo também não o preocupa. «Não me preocupa porque eu conheço a verdade, e a verdade está aqui, à frente do palco, de terra em terra: campeão de vendas, campeão de assistência. Sabe porquê? Porque artista é o que consegue transmitir emoções. E o público sente o que canto, por isso canta de cor as minhas cantigas.» Diz sentir que captou já, praticamente, todos os sectores da sociedade portuguesa. Menos o elitista, seguramente. «Mas acha que me devo preocupar com pessoas que pensam que o mundo começa na 24 de Julho e acaba no CCB?»
Américo Pinto da Silva Monteiro, de seu verdadeiro nome, nasceu em 25 de Março de 1957, em Covas do Douro, o mais novo de três irmãos. Veio cedo para Lisboa, para casa de familiares, e foi aqui, ao mesmo tempo que começava a trabalhar, que fez os seus estudos, inclusive os de guitarra clássica. Foi professor do mesmo instrumento, dos 20 aos 30 anos, mesmo depois de ter começado a ganhar os primeiros tostões com a música, tocando, ao final da tarde, «música internacional, de todo o género, nos hotéis da linha do Estoril». Foi, diz ele, a sua «grande escola, o palco em que verdadeiramente amadureci». Profundamente influenciado pela música popular que, enquanto jovem, foi ouvindo nos bailaricos da sua aldeia e na faina das vindimas em que o povo se ocupava - a concertina e o acordeão aliviavam o esforço dos homens, os enormes e pesados cestos à cabeça, encostas acima e abaixo -, desde cedo se serviu do genuíno dessas raízes para imprimir um cunho muito próprio às suas composições.
Quando, aos 30 anos, abriu em Lisboa o seu primeiro estúdio de gravação, a qualidade do seu trabalho musical já era sobejamente conhecida no meio. Marco Paulo, por exemplo, recorreu a ele para gravar «Joana», o maior êxito da sua carreira depois do «Eu tenho dois amores». Hoje, do Estúdio de Gravação A.M., que possui na Pontinha, saem uma média de sete, oito álbuns por ano - aparte o seu próprio e o das Bombocas - de outros tantos artistas. «Se eu fosse 50 Emanuéis, tinha trabalho para eles todos», diz ele. «Só faço 20 por cento do que me pedem para fazer. Não faço mais porque não quero, também preciso de dormir...»
Depois de cinco anos consecutivos de êxitos, Emanuel, um caso raro de comunicabilidade, apresenta-se, este Verão, com uma banda completamente renovada e um equipamento, de som e de estrada, novo mas, reconhece, subdimensionado. «Já fizemos espectáculos para mais de 20 mil pessoas, e a verdade é que não estava à espera disso e não tenho som para tanto!» Quanto à possibilidade de a fórmula que o tornou famoso estar gasta, ou em vias disso, o cantor diz não estar preocupado. «Pelo contrário. Estou a vender, este ano, quase o dobro do ano passado. Sou, por outro lado, talvez o artista mais polivalente no meio da música ligeira e popular. E sou um homem que gosta de gerir os seus recursos. E sei, garanto, que tenho suficientes para continuar a conhecer o sucesso nos próximos cinco anos.»
Vaidade? Nada disso. Não é o seu estilo. Antes a certeza, medida dia a dia, de festa em festa, frente ao palco, de que o povo gosta de cantar e de dançar a sua música. E, como diz a letra de uma delas, «se gostas do bombom, toma, toma/ prova porque é bom, toma, toma»...
Fernando Gaspar / Expresso, 22/08/1998
imagem - capa da Revista Pimba
domingo, 8 de agosto de 2010
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