sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
O pequenino «artista»
TVisto
Um dia destes, talvez à falta de melhor tema, talvez não, Margarida Marante foi saber como é que criancinhas que o "showbiz" vedetarizou, os chamados "artistas de palmo e meio", compatibilizam a sua condição de meninos com a alegada condição de prodígios. Para isso, chamou aos estúdios da SIC a Maria Armanda, que há anos teve um grande êxito a cantar que vira um sapo, Ana Malhoa, cançonetista de segunda geração e apresentadora do "Bueréré", Saúl, discípulo e versão miniaturizada do Quim Barreiros. Quem assistiu à emissão teve o gosto de verificar que Maria Armanda não confirmou as previsões pessimistas dos que em tempos miraram, consternados, a bonequinha de unhas precocemente pintadas em que tinham transformado a criança que afinal foi capaz de crescer e tornar-se uma criatura tão normal que até foi condenada pelo mercado de trabalho a aplicar uma licenciatura em Letras nas funções de telefonista. Quanto a Ana Malhoa, foi discreta e disse o que dela poderia esperar-se com algum optimismo, isto é, teve uma prestação que pouco ou nada adiantou ao tema em debate. Também passou pelo programa aquela pequena convenientemente esquálida que recentemente surgiu, diz-se, como modelo de grande grandeza internacional, mas como ela só se tornou vedeta aos catorze anos dificilmente pode ser arrolada como menina-prodígio. O pequeno Saúl, esse sim, foi uma presença talvez mais que significativa, impressionante. Com ele veio o pai, que deu muitos sinais de estar feliz com o êxito do filho, e ainda bem. Mas o garoto, se é que esta palavra ainda se justifica plenamente, deu para pensar.
O Saul tem, como todos viram, o ar de um adulto em escala reduzida e, ainda isso não deva ser o mais importante, é talvez um dado menos esperado e justificador de uma vaga inquietação.
O importante, porém, é o próprio Saul e o que o Saul faz, isto é, o que ele canta. Porque, como se sabe, o Saul não canta umas canções quaisquer: o seu repertório é constituído total ou maioritariamente por canções do Quim Barreiros ou no estilo de Quim Barreiros. Saul chamou-lhe "brejeiras". Não são, pelo menos no que diz respeito às mais representativas: são obscenas, e dizê-Ias brejeiras é utilizar um semi eufemismo que visa furtá-las à adequada qualificação. E, acentue-se, não são obscenas por aludirem a coisas do sexo. O sexo não tem nada de obsceno, e decerto serão poucos os que sustentam terem nascido na sequência de uma obscenidade. O que é obsceno, isso sim, é o preconceito reles que por complexos motivos culturais (em melhor rigor, anticulturais) hostilizam o sexo e contra ele se mobilizam, quer utilizando um discurso falsamente purista e moralizador quer lapidando-o sob o arremesso de pilhérias onde o despeito e as frustrações tentam disfarçar-se sob o esfarrapado manto da graça rasteira.
Apedrejar o sexo
Tal como o Quim Barreiros, o pequeno Saul colhe as suas munições "artísticas" nesse velho arsenal. Mas não é o Quim, mas sim o Saul, que aqui interessa e que interessou à pesquisa de Margarida Marante. Com algum visível embaraço, a jornalista perguntou ao miudo se ele sabia do que estava a falar em certas das suas cantigas, e o artista respondeu, com os seus gestos de adulto prematuro, que sim senhora, é claro que sabia. Admitamos que sim, que tem uma ideia necessariamente teórica e crua dos temas que lhe fornecem. A questão é que, apesar da sua precocidade, não é de crer que ele saiba, com um saber todo de experiência feito, da pulsão sexual, das relações sempre delicadas e parcialmente misteriosas entre sensualidade e sentimento, da intimidade entre desejo e amor.
Quer dizer: o que dificilmente ele pode saber, porque se trata de uma sabedoria que lhe é praticamente inacessível, é que as suas cantigas avacalham um universo de realidades cuja abordagem em termos de seriedade continua a ser extremamente difícil, mesmo nos dias de hoje, liberalizadores de comportamentos.
Posto isto, a interrogação que me surge tem a ver com o que vai ser Saul, quando deixar de ser pequenino, perante a vida sexual e sentimental e alheia. Com razão ou sem ela, tenho como certo que a sua educação sexual mais a do auditório infantil que segundo ele é o que mais gosta de ouvi-lo é a pior possível. E isso tem consequências, para si e para os outros, até porventura para os que hoje não pareciam por aí além a sua actividade artística. É um preço a pagar, sem dúvida. Pequeno preço, certo, na avaliação do seu feliz pai. Preço difícil de fixar, mesmo só por cálculo aproximativo, se não nos alhearmos do efeito deseducador das cantigas reles num país secularmente hostil a um entendimento do sexo em termos de seriedade ou, talvez mellhor, da mera inteligência. Continua a não ser raro, entre nós, que a garota apedreje um casal de cães surpreendido em plena cópula. Mas comparado o pequeno Saul, na esteira do espigadote Barreiros ganhou notoriedade a apedrejar com versalhada de pé-quebrado alguns aspectos da sexualidade corrente. Ouvimos contar que o produto dessa industria está a ser amealhado para benefício futuro, seu e dos seus irmãos. A mim, contudo, ficou a preocupar-me a contabilização não feita dos prejuízos decorrentes de tão feliz actividade «artística».
Correia da Fonseca, Avante! Nº 1266, 05/03/1997