É tão mau, tão mau que até parece bom
O JN falou com o cançonetista do momento. Zé Cabra vende 10 mil discos, ainda que admita «não saber cantar»...
É o homem de quem se fala: Casimiro Afonso, ou melhor, Zé Cabra, é a mais recente ilustre personagem que, da noite para o dia, saltou do anonimato para o estrelato neste país de Zés Marias e Manueis Subtis. Ora, o que terá de especial este Zé Cabra? Muito simples: canta. Ou melhor, da sua boca soltam-se uns gemidos e umas frases_, não canta, portanto. E isso é bom ou mau? É mau, claro, mas o mau, aqui, neste rectângulo chamado Portugal, também pode, pelos vistos, representar o contrário disso mesmo _ pode ser bom. Confusos?
O António
«Isto é o fenómeno da arte de mal cantar» _ quem o diz é António, uma espécie de mistura híbrida de empresário, «manager» e representante do artista. O JN acompanhou um ensaio de Zé Cabra nos estúdios da sua editora _ a Espacial _, e tentou, dentro do possível, tentar compreender o fenómeno. Rodeada por paredes repletas de discos de ouro e platina atribuídos a artistas do calibre de Tony Carreira, Bruna e Liliana, Tentações, Toy e Ágata, a reportagem do JN ia aguardando a chegada da grande figura enquanto ouvia as explicações de António, o homem que exige rigidez e disciplina em fase de pré-digressão, na qual cobrará 800 contos por espectáculo: «Não me interessa nada que ele consiga afinar ou cantar melhor. A minha única preocupação é que ele se esqueça das letras. Vai ter um concerto daqui a três dias e ainda não consegui meter-lhe as letras na cabeça».
Ciente da realidade, António não tem problemas em afirmar: «É inegável que ele não tem talento. Ao nível da interpretação aquilo é muito mau. Mas ainda ontem estive a ouvir aquela merda (refere-se ao disco) e reparei que até existem partes em que ele, apesar de não estar afinado, consegue entrar no tom da música. Não sei explicar!». Entretanto, entra em cena Francisco José, um dos gerentes da editora Espacial. Mete-se logo na conversa; e, do alto da sua sapiência, declara: «Já vendeu dez mil discos. Só ele é que é capaz de cantar assim; ninguém vai conseguir imita-lo». Atento, António, não deixa escapar a oportunidade para, quase em segredo, confessar: «Bem, eu acho que era capaz de cantar ainda pior do que ele...».
A azeitona
É então chega o grande homem, Zé Cabra. Primeira impressão: é tímido e um tipo simples. Nota-se que ainda não está habituado a situações de entrevistas. Mais: Zé Cabra parece estar nervoso nos primeiros minutos da conversa. Mas diz: «Canto desde muito novo. Lembro-me que cantava músicas do Roberto Leal enquanto andava a apanhar azeitona pelos campos na minha aldeia, em Gralhós, perto de Macedo de Cavaleiros. A gente tinha que se distrair com alguma coisa...».
Depois disso, com 15 anos, mandou-se para França: «Era suposto ter ido de férias, mas acabei por lá ficar». Hoje, vive-se um período de paradeiro incerto: «A minha família está lá. Eu vim para cá porque o povo português me chamou». E, qual candidato às eleições presidenciais, lança, pela primeira vez, a afirmação que repetirá vezes sem conta ao longo da conversa: «Estou aqui ao serviço do povo português e enquanto o povo português quiser».
Zé Cabra, pintor na construção civil em França, 35 anos, signo gémeos. É um homem lúcido, consciente da realidade. E não hesita ao admitir: «Sei que canto mal e é verdade que me engano e me esqueço das letras. Vou começar a dar espectáculos agora e estou preparado para enfrentar o povo; mas as pessoas têm que compreender os meus erros. Errar é humano». Pois: herrar é umano. É claro que um cantor deste calibre só podia ser de um clube: o Benfica. Ao mesmo tempo que o confessa, parece profetizar futuros breves: «Nem que ele vá parar à segunda divisão. Eu serei sempre benfiquista!».
As mulheres
O seu ídolo é Tony Carreira. Sonha em fazer um dueto com ele no Olympia de Paris. Até lá vai assistindo ao fenómeno crescente da fama: «Tenho dado muitos autógrafos. Já não passo despercebido na rua». E, já agora, qual foi o maior elogio que recebeu até hoje? «Foi quando entrei num avião da TAP e duas hospedeiras disseram-me que já me tinha visto na televisão», afirma.
Zé Cabra, cantor romântico. Todas as canções de «Deixei tudo por ela», o álbum, navegam tumultuosamente em águas de romantismo; há ali, sempre, uma «ela». E, se, por ventura, o traço romântico das suas letras despedaçar corações por esse país fora? Zé Cabra, homem casado, é firme na sua posição: «Não vou misturar a minha vida de cantor com a minha vida privada».
Zé Cabra decide ir para o estúdio. Ei-lo em grande estilo: o botim afiado, o casaco de couro negro com os colarinhos ligeiramente levantados, o cinto das calças exibindo imponente fivela. Coloca os auscultadores e começa o ensaio. Atrás de um vidro, o técnico da mesa arranca com o playback instrumental. Zé Cabra ondula, ergue os dedos, baila _, e canta. Canta? Enfim: o JN esforça-se para assistir a tudo isto com o ar mais sério e profissional do mundo. Até que, já cá fora, entre um cigarro e umas confissões, Zé Cabra profere a verdade maior de toda a entrevista: «O disco fecha com a canção «Não troco as portuguesas» por uma razão muito simples: as portuguesas são as mulheres mais bonitas do Mundo».
CRISTIANO PEREIRA / Jornal de Notícias, 31/03/2001
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