A inesperada vitória autárquica de Rui Rio foi-me simpática, devo dizer. Tinha dele uma imagem de homem de princípios e de isenção, e não me foi indiferente que essa vitória, obtida em circunstâncias adversas, tivesse algo de eminentemente cívico contra uma óbvia aliança de poderes fáticos locais atrás de um outro candidato, de postura por demais arrogante.
Isto, sem me esquecer, contudo, de dois pontos de interrogação e mesmo perplexidade, a afirmação "o Porto 2001 foi uma oportunidade perdida" e o ponto programático de distinção cultural, a animação dos coretos. Interpretei-as como argumentos eleitorais face à principal candidatura adversária. Teriam ao menos contado o número de coretos ainda realmente existentes? E quanto à "oportunidade perdida", quis supor que a apreciação traduzia um certo estado de espírito de uma civildade burguesa portuense, não esquecida do que entendeu ter sido uma afronta a Artur Santos Silva, e que eventualmente desejaria uma ainda maior cativação de verbas a valores patrimoniais - na ignorância da astronómica percentagem atribuída à reabilitação urbana no Porto 2001 nomeadamente se comparada com a da programação, muito mas muito menor. Nada de taxativamente irreparável, pensei. Fui ingénuo, como é patente.
O investimento feito no Porto 2001, em estritos termos financeiros mas também de práticas simbólicas e de consumos culturais, não foi de restrito âmbito local, tendo até naturalmente exigido um vultuosa participação do Estado central, além de que é suposto enquadrar-se num conceito europeu. Ainda menos razões há então para se restringirem ao âmbito da cidade os ecos da política cultural de hetacombe e populismo ridículo que, tomando o rancor e a paranóia de perseguição como determinantes da sua pragmática, Rui Rio vem encetando. E, de resto, como se pode verificar na imagem, contando mesmo com o apoio do ministro da Cultura.
A nível nacional temos vindo a saber como o executivo camarário se tem empenhado em drásticos cortes orçamentais no apoio à Fundação da Ciência e Desenvolvimento, que engloba o Teatro do Campo Alegre, ou ao Fitei, o Festival de Teatro de Expressão Ibérica. Que o orçamento seja de rigor, compreende-se. Que os mais danosos cortes ocorram na Cultura como se esta fosse o pelouro dos "restos" é inaceitável, e para mais é, nas actuais circunstâncias do Porto, um erro político e estratégico que se arrisca a ser, este sim, irreparável.
A famosa "oportunidade perdida" foi então uma auto-premonição: Rio estava apostado em fazê-la perder! È suicidário e altamente perdulário (inclusive para o erário público, e de que maneira!) que o investimento feito no Porto 2001 fique sem "pontes para o futuro", ou seja, retirando às actividades culturais o mínimo de condições de continuidade que permitam o aproveitamento e a rentabilização das potenciais sementes deixadas por um ano de excepção. O que se cerceia e corta agora, em 2002, corre o gravíssimo risco de muito dificilmente vir a ser "recuperável".
No PÙBLICO de terça-feira, no 1º caderno, nacional, li que o vereador Paulo Cutileiro tinha avançado como uma das razões para o corte orçamental na Fundação que as actividades daquela "não chegam a todos os portuenses" - extraordinário, como se exceptuando o saneamento básico, eventualmente transportes públicos e pouco mais, toda e qualquer câmara não investisse também em redes e actividades que "não chegam a todos" os munícipes!
Mas na terça, por mim já não estava desprevenido. Na edição impressa do caderno Local do Porto do dia anterior tinha visto um mirabolante "instantâneo", de tal modo indiciador que me parece pertinente propor a sua republicação a nível nacional. Diz a foto respeito a uma notícia de título "Rui Rio rivaliza com rei da música 'pimba'", nem mais! O "rei", é claro, é Emanuel - o rei, que digo eu?, o criador, o autêntico, o do refrão fundador "e nós pimba"! Pois que aconteceu de tão importante que, ao apelo pimba, até o ministro Pedro Roseta "ressuscitou" como se comprova, ele por quem já temíamos, que do ministério só tínhamos vindo a ter notícias pelo secretário de Estado Amaral Lopes? Pois sucedeu que houve uma festa da Rádio Festival, a famosa interface do comércio e consumos "pimba", um evento da maior importância cultural, em relação ao qual a câmara do Porto não descortinou razões orçamentais imperiosas que impedissem o apoio. Ou duvidam que Emanuel, esse sim (mas já agora, não se esqueçam de Àgata ou Romana), é cultura "para todos"?
É-o em estado potencial ou propredêutico, pelo menos, como o esclareceu, fidelíssimo à sua concepção paternalista, escolástica e bota de elástico, o ministro Roseta: "devemos aproveitar estes momentos para chamar a atenção dos adultos que não vão à escola para os grandes nomes da literatura e da música", assim a modos que começam eles com o Emanuel e depois fazemos com que passem a gostar de Bach ou Haydn, se posso citar dois autores que creio serem particularmente caros ao melómano Pedro Roseta. E Rio, que estava ali a fazer política mais terra a terra, logo pôs a festa de Emanuel em contraponto ao Campo Alegre: "Em vez de apoios monstruoso, devemos juntar o útil ao agradável. (...) A Câmara deve dar à população momentos de alegria, porque são pessoas que ganham pouco e têm uma vida difícil". Já que o contraponto foi feito por Rio, e as declarações são suficientemente explícitas, ficamos mesmo interrogativos sobre se à Ciência e Desenvolvimento o edil portuense não preferirá antes uma refundação para a Alegria no Trabalho. Ora aí está: e o Porto, pimba!
Mas que me deu para ter pensado que Rio representava uma certa civildade burguesa portuense, digamos que os mecenas de Serralves? De estupefacção em estupefacção será que ainda haveremos de ver Santana Lopes dar lições de chá a Rio? Pretende este demonstrar que, diferentemente do sucedido com e após Lisboa-94, o impulso do Porto-2001 não permitirá um aumento das apetências e consumos culturais? Mas foi este mesmo Rui Rio que os portuenses quiseram eleger?
Lá por ter sido ingénuo, não quero também ser agora injusto: a presença animada do ministro Roseta confere um outro enfoque político à coisa. Quem sabe se Rio não estará na "vanguarda" das políticas culturais do PSD, de um desejo de "pimbização" em curso? E nós? Pimba!
Augusto M. Seabra / Público, 28/07/2002