O demónio gosta de manter as distâncias. Enfeitiça-nos melhor de longe. A prova são estas fotografias emolduradas sobre as cabeças dos clientes. Não há café nem restaurante das terras do demo que abdique de uma vista aérea da região, pendurada na parede. São paisagens verdejantes, aprazíveis, enganadoras. Cá em baixo não é assim. De perto, coberta de pedras e pinheiros, a terra tem o rosto crispado da intempérie. É infértil, inútil, couraçada e surda. Não corresponde o amor dos seus filhos e eles fogem.
Engrácia Teixeira e Leontino Pereira, 54 e 58 anos, na sua casa de dois andares, decorada com motivos de xisto, em Arcas. As vizinhas elegeram Engrácia para contar a história que é comum a todos, porque ela é "toda rigolota, gosta de rigoler". Chegaram à estação da Guarda, em 1972, sem autorizações para viajar. O passador já lá estava à espera. Foram com outro casal, de carro, durante a noite. Atravessaram clandestinamente a fronteira, pararam em Aix, de madrugada. "Então isto é que é a França? Pinheiros também temos lá. Quero voltar para Portugal!", disse Engrácia, toda rigolota. Não voltaram. Trabalhariam os dois, na mesma fábrica de madeiras, 30 anos. No Verão, vêm a Arcas, para a festa, sempre. Uma vez, tiveram de recomeçar o trabalho mais cedo, partiram precisamente no fim-de-semana da Senhora das Seixas, já se ouvia a música na estrada. "Passámos a festa no carro", recorda Leontino. "Foi o dia mais infeliz da minha vida".
Amam a sua terra ao longe. Visitam-na, em Agosto, "para recarregar baterias", como diz o padre Toni, de Sever. É de lá, da França, do Luxemburgo, da Suíça, da Alemanha, que amam a terra que ignorou a sua devoção milenar e submissa. Amam-na como a uma relíquia, uma imagem sonhada conservada numa moldura de ouro, como as paisagens aéreas da Serra da Lapa ou de Leomil nos restaurantes de Sátão, Penalva do Castelo ou Moimenta da Beira. E talvez por isso nunca a reencontrem. Instalam-se com todo o alarde em aldeias-fantasmas, investem tudo nas vilas entretanto convertidas ao mundo global, a que eles resistiram. São náufragos na sua terra, a que mesmo assim dão tudo.
Para eles, o Verão, Agosto, é uma época ritual. Vêm representar uma ilusão. Viver na aldeia com os recursos que apenas possuem porque deixaram a aldeia. Vêm todos os anos, nunca falham. Pouco importa que a aldeia seja imaginária e que a realidade que vivem seja um mito. Não falham, com uma condição: que haja festa.
Aqui, na Beira Alta, como por todo o Portugal interior e pobre, há festas de arromba em todas as aldeias e vilas. Em honra de um santo padroeiro, com a sua missa e procissão, mas também com baile e concerto de música pimba. Maiores ou menores, consoante o número da população, a sua riqueza ou a sua vontade de marcar pontos na competição desenfreada entre as várias comissões de festas. Nos peditórios que realizam porta a porta, há quem dê 100, 200 ou 500 euros para a organização do evento. A festa é uma demonstração de poder, de vitória sobre a pobreza. Há competição entre as famílias e entre as aldeias e tanto num caso como noutro nem sempre são os mais abastados que contribuem com os maiores donativos.
A pobre Alhais de Cima, que nunca fizera festa, lançou-se este ano na aventura pela primeira vez, graças à iniciativa de três emigrantes, enquanto Queiriga, muito rica, a quem até chamam a aldeia mais francesa de Portugal, teve em tempos uma boa festa mas agora não tem.
Arcas, por exemplo, um lugar da freguesia de Sever, concelho de Moimenta da Beira, não tem mais de 300 habitantes, durante o ano. Em Agosto, reúne milhares de pessoas na festa da Senhora das Seixas, que dura quatro dias seguidos. De sexta a segunda, com o duo Raio Solar a abrir a primeira noite, os irmãos Rui e Marisa, quatro horas seguidas, ele ao órgão, ela, que não chegou a ser seleccionada na Operação Triunfo (injustamente, garante), a cantar. "Aqui é pimba prá frente!"
Folgosa, uma minúscula aldeia numa encosta do rio Paiva, no concelho de Castro Daire, faz uma festa tão atravancada que os carros passam à frente do palco. Os pares dançantes têm de encostar-se à parede, por baixo das janelas e varandas onde famílias inteiras se instalaram para a noite mais importante do ano, enquanto o conjunto enche o exíguo palco com os seus sete músicos e duas bailarinas sexys e rebenta as colunas de som com o top ten da sordidez pimba. "Ponho o carro, tiro o carro, na garagem da vizinha... à hora que eu quiser, à noite e às vezes à tardinha... na garagem apertadinha..."
Raparigas dançam com raparigas, os maridos com as cunhadas, à frente da fila de idosas de preto, sentadas com expressões de dolorosa confusão. O vocalista, cabelo em rabo de cavalo e óculos escuros, canta fora do palco, no meio das pessoas. "Boa noite Folgosa! A próxima música é dedicada à comissão de festas e ao restaurante que nos ofereceu hoje o almoço".
As pacatas Penalva do Castelo ou Sátão reúnem, na praça principal ou da feira, mais pessoas para verem Romana ou Tony Carreira do que a maior parte dos espectáculos da capital. Vêm milhares de pessoas, é matemático, quer se divirtam ou não. Isso depende de quanto se dispuseram a gastar. Se nas aldeias a animação está nas plateias, quase indiferentes a quem debita os repertórios no palco, já nas festas das vilas ela depende em grande medida do artista convidado. Num espectáculo de Tony Carreira, como o do Sátão, o povo exulta num espasmo glorioso, mas numa festa onde apenas houve dinheiro para convidar a Romana, como em Penalva, reina o tédio.
"Olá. Estás bem disposto? Como te chamas? Pedro? Ó Pedrocas..." Romana fala com os espectadores, agora com um rapazito das primeiras filas, depois de ter entrado no palco aos saltos, com duas bailarinas e música em playback. "És tímido Pedrocas? Vou-te fazer uma declaração de amor, tens de aguentar, olhos nos olhos". E começa a canção: "Não és homem para mim, eu mereço muito mais..."
O público fica indiferente. Homenzinhos de casaco puído e boina, senhoras com crianças às cavalitas, fixam o palco com olhares ocos, que parecem atravessar a Romana, hipnotizados pelos holofotes. Alguns, como este gigante de enorme bigode e rosto achatado de Neandertal, estão literalmente de boca aberta, demasiado pasmados para terem alguma reacção. "Sem dúvida que nós gostávamos de mais palmas", queixa-se a Romana. "Mas nós sentimos que vocês estão a gostar de verdade".
O Sátão foi outra coisa. Investiram três mil contos (15 mil euros) no cachet do Tony Carreira, e não se arrependeram. A multidão está eléctrica, mesmo quando ouve a inefável banda de apoio, a Banda-S, de Samuel Ferreira. Dançam, gritam, famílias, grupos de rapazes ou de raparigas, as inevitáveis velhinhas mal-humoradas em cadeiras de praia enterradas no meio da balbúrdia. Rezingam em surdina a cada nova canção dos Banda-S, o que é sem dúvida a sua forma de mostrar que se estão a divertir. Outros mostram-no desferindo pancada uns nos outros, como este pai com os seus três filhos adolescentes. Terá 60 anos e um metro e meio de altura, magro e amarrecado, pele de granito, orelhas de abano, cabeça achatada e olhos azuis a faiscar junto ao nariz bicudo. Ri-se, canta e dança, fora de si de felicidade, e, a cada guinada mais forte de euforia, saltita para dar carolos nas nucas dos filhos, que são iguais a ele, em ponto grande. Não lhes deu tréguas durante toda a festa. "Olha ali... lá vem o Tony..." O imberbe vira a cabeça e pimba, carolo na moleirinha.
"Eu gosto de mamar nos peitos da cabritinha..." A Banda-S em toda a sua pujança. O filho a cantar, o pai a tocar acordeão. Há dois palcos, montados num ângulo de 90 graus. O grande, de Tony Carreira, que mais ninguém pode utilizar, e o da Banda-S, de tubos metálicos, com cobertura de plástico, todo construído a maçarico na garagem de Samuel Ferreira. "Alugo Palco" lê-se por cima das colunas, ao lado de um número de telefone. A multidão dança, mas é óbvio que estão todos impacientes pelo Tony. A banda de apoio tem de tocar antes e depois do concerto principal.
"Até o último bêbado decidir ir embora", queixa-se Samuel Ferreira, 51 anos. "Ando nisto há 30 anos", conta ele, encostado à carrinha que diz "Banda-S Tour 2004". Começou sozinho, a tocar em festas com o acordeão e um altifalante que pendurava numa árvore. Agora actua com os três filhos e dois vizinhos. Além do palco, também fabricou o sistema de som, o P.A., com altifalantes aparafusados em caixas de madeira. Leva 150 contos por espectáculo, incluindo a banda, som, luzes e palco. "Geralmente só dá para a deslocação. Muitas vezes não pagam". Além da música, os filhos trabalham numa serralharia. Mesmo assim, não é suficiente para sobreviver. A família Ferreira come as batatas e feijões que cultiva e as galinhas que cria no quintal da sua casa, em Pedrosas.
O contraste entre os palcos e os veículos das bandas principal e de apoio é chocante. O camião branco gigantesco de Tony Carreira, com todos os milhares de watts de aparelhagens e os 24 elementos da tournée, incluindo os nove músicos e pessoal técnico, humilha a ridícula traquitana de Samuel. "Tivemos de montar o palco de lado, sem condições nenhumas, por causa das exigências deles. Tratam os outros artistas como se fossem lixo. Qualquer dia já não há recintos onde possa tocar. E quem é ele? Há tanta gente a cantar assim ou melhor. A diferença é que não foram à televisão, e não têm um P.A. tão bom. Toda a gente sabe que, hoje em dia, o que faz um bom artista é o P.A.".
A família Ferreira está a tocar há duas horas, sem intervalos entre as músicas. "Dou-te tudo, meu amor, dou-te tudo..." Já ninguém ouve. "Eu gosto de mamar nos peitos da cabritinha..." Ninguém bate palmas, ninguém olha. Aos poucos, as pessoas vão-se voltando para o lado direito, para o outro palco, que está completamente às escuras. De repente acendem-se algumas luzes, para que o pessoal técnico venha dar as últimas aparafusadelas aos tripés e pratos das duas baterias... e acontece o inacreditável: a multidão em peso gira 90 graus. Não importa que a Banda-S continue a tocar: 90 graus de desprezo por eles. Nem que a banda de Tony leve mais uma boa meia-hora até entrar em palco: 90 graus de crueldade, 90 graus de lei do mais forte. A turba tenta chegar-se mais à frente, comprime-se, num sufoco de excitação.
Nos altifalantes ouve-se a voz do organizador da festa: "Pede-se aos pais que não deixem os filhos pendurar-se nas torres das colunas de som. Meninos, não sejam impertinentes, desçam já das colunas de som!"
Rui Rebelo, 40 anos, o organizador da festa, é professor. Acumula a actividade na empresa Companhia das Festas com o ensino de música na Escola Secundária de Vila Nova de Paiva. Desde os pequenos arraiais de aldeia até aos grandes eventos como o de Sátão, encarrega-se de tudo - contrata e aloja os artistas, aluga palcos e aparelhagens, trata das burocracias e até sugere os programas, consoante o dinheiro que há para gastar e o tipo de público da povoação em causa.
"Tony Carreira é o maior, sem comparação. Quer em termos de logística, quer em preço, quer em procura, quer em condições exigidas", explica-nos ele. "Só há outro tão requisitado como ele: o Quim Barreiros, apesar de actuar praticamente sozinho, com o seu acordeão. Toca 30 dias por mês".
Abaixo do Carreira, há artistas como Emanuel ou Toy, com cachets na ordem dos dois mil contos, e depois, num terceiro patamar, Romana, Micaela, Rute Marlene, Ágata, Taiti, Ana Malhoa, que custam à volta de mil contos e não têm material próprio. Marco Paulo e Roberto Leal estão em decadência, já ninguém os quer. Mas Rui disponibiliza-os a todos no seu "catálogo". Onde tem também alternativas mais baratas, como conjuntos de baile ou ranchos folclóricos, "que às vezes actuam só pelo lanche".
Alguns conjuntos regionais, porém, apesar de só tocarem músicas de outros, tornam-se famosos e chegam a atrair mais público do que os cantores pimba de nomeada. É o caso dos "TV 5", que até incluem fogo de artifício nos espectáculos. Recentemente, aliás, fizeram explodir inadvertidamente os foguetes que guardavam debaixo da bateria, durante a actuação, e foram parar ao hospital. Toca o telemóvel. "Está? Uma festa para amanhã? Onde? É um pouco apertado. Já não há artistas livres... Vou ver o que posso arranjar".
O palco está iluminado, Tony Carreira faz-se esperar. A multidão grita "Tony! Tony", entre a devoção e a turbulência. Grupos de rapazes troçam das fãs: "Aiii Tonyyyy!" Lançam bocas para o palco: "Então? Nunca mais se vêm?" Mas quando Tony entra triunfalmente, são os primeiros a render-se, embevecidos, e a entoar as canções que sabem de cor: "Ela foi a minha mais linda história de amoooor..." Tentam armar-se em duros: "Ai, ai, olha para mim a chorar..." mas recaem logo: "Depois de ti mais naaaada..."
Luzes azuis. O cenário de fundo é um céu com estrelas luminosas. Os músicos da secção dos metais vêm de óculos escuros e calças de cabedal negro. Os guitarristas, o baterista e a percussionista, de túnicas. As duas cantoras de branco. O som dos baixos faz estremecer Sátão. "Toda a gente sabe que é o P.A. que faz um bom artista". Tony de fato preto e camisa cor-de-rosa, a fivela do cinto a reluzir, esguio e angélico, segurando magicamente nas mãos grossas, de trabalhador, a multidão em transe e em uníssono.
Tony Carreira, com o irmão e "manager" e a presidente do clube de fãs, está hospedado na estalagem Mira Paiva, que acabou de ser inaugurada e já se transformou numa espécie de residência oficial dos cantores populares. Todos os dias de Agosto tem um diferente, de acordo com o calendário de festas de Rui Rebelo. Todos os dias de Agosto tem também um casamento, no salão da cave, que dura das duas da tarde até às tantas da madrugada, com banquete, baile e cantor pimba. Quase todos emigrantes, os noivos conhecem-se, em muitos casos, na festa de Agosto da sua terra, e marcam o casamento para o Agosto seguinte, também na sua terra, pretexto para fazerem outra festa.
Geralmente, cabe aos noivos a suite especial da estalagem. Não esta noite. Tony Carreira exigiu-a e o casal teve de passar as núpcias num quarto mais modesto. Não obstante, a primeira coisa que fizeram de manhã foi pedir um autógrafo ao cantor.
De início, Tony mostra-se desconfiado com os repórteres da Pública. Sem tirar os óculos escuros, quer saber qual o propósito da entrevista. "Muitos jornalistas dizem que o são mas não é verdade". Recusa-se a contar a história da sua vida, desde a infância na pequena aldeia da Beira Baixa, Armadouro, até à vida de emigrante em França, ao sucesso como cantor. Considera uma ofensa que um jornalista que lhe pede uma entrevista não saiba tudo sobre a sua vida. E tem razão. A alguém que vendeu dois milhões de discos, deu mais de dois mil concertos, 90 por ano só em Portugal, que esgotou o Pavilhão Atlântico, cinco coliseus e três Olimpias, não se pede que nos conte a sua vida, como se fosse um desconhecido. A pergunta que se impõe é outra: como chegou até aqui sem conquistar o respeito dos jornalistas? Porque não lança uma campanha de imagem junto da imprensa "séria"? Resposta: "Se cheguei até aqui sem a ajuda dos jornalistas, não é agora que me vou preocupar com campanhas de imagem".
É um homem marcado pelo ressentimento, embora não o admita nem compreenda o que lhe falta conquistar. "Sei que se cantasse outro género de canções seria visto de outra maneira", mas "um artista como eu não muda o género de canções. Pode mudar a roupagem, mas o estilo não, porque sou eu próprio. Tenho um grande orgulho em ser um artista do povo".
Considera-se um cantor romântico. "Pimbas são as telenovelas portuguesas, e ninguém lhes chama assim. O Julio Iglésias é quem é porque é espanhol. Se fosse português, com todos aqueles tiques, o que lhe chamariam?"
No palco do Sátão, Tony pega na guitarra acústica para cantar as canções antigas. É a sua imagem de marca, o "logotipo" pintado no camião, a silhueta do cantor, caminhando com a guitarra, evocando a ideia do trovador solitário e errante.
"A grande maioria de vocês está de férias por cá, não é?", diz ele, provocando a gritaria da multidão hipnotizada. Começa a cantar, acompanhado por todos, em coro, e de repente parece uma figura irreal, o bardo de um mundo perdido. "Está em mim querer o mundo, sou um eterno vagabundo..."
O filho mais novo da família carolo bamboleia-se, de braços no ar, "sou eterno vagabundo..." O pai, radiante, não perde a oportunidade. "Ai és vagabundo? Então toma!"
Todos agitam os braços no ar, não com isqueiros mas com os telemóveis, a tirar fotografias. Estabelece-se uma estranha e poderosa intimidade. Tony avança para a canção que o torna imortal entre os milhões de emigrantes, o sétimo encore. "Lembro-me de uma aldeia perdida na Beira, a terra que me viu nascer... E hoje a cantar, em cada canção, trago esse lugar no meu coração. Criança que fui e homem que sou, nada mudou".
Está tudo a postos em Arcas, rebentam os foguetes, a festa vai começar. O palco está montado junto à capela da Nossa Senhora das Seixas, num promontório de castanheiros de onde se vêem as serras em redor. O duo Raio Solar começa a cantoria e zás, falha a electricidade. Tudo às escuras e em silêncio. Parece que o céu cheio de estrelas se abate subitamente sobre o recinto. "Alguém tem um isqueiro?", ouve-se do palco.
Confusão. O problema nunca mais é resolvido, os empregados do bar improvisado resolvem ligar o rádio a pilhas. O relato do Benfica-Porto torna-se o som da festa. O presidente da junta sobe a um contentor de lixo, para consertar o quadro eléctrico pendurado num poste. A luz falharia mais onze vezes durante a noite, obrigando o autarca a passar horas em cima do contentor, examinando os complicados circuitos, uma espécie de matrix de toda a festa.
José de Jesus Pereira, presidente da Junta de Freguesia de Sever, de que o lugar de Arcas faz parte, é o mordomo-mor da festa da Senhora das Seixas. Com os restantes cinco mordomos e quatro mordomas, trabalha na organização desde a festa do ano passado. É construtor civil, pelo que construiu o púlpito de cimento para a missa campal quase inteiramente à sua custa. Mas para o resto das despesas conseguiu angariar 60 patrocinadores. "Uma festa como a de Arcas custa muito dinheiro. Cerca de 4500 contos. Só a filarmónica da procissão custa 800 contos. Os mordomos têm de adiantar somas consideráveis, porque o peditório só é feito depois de haver um programa garantido. E as pessoas só dão dinheiro se esse programa for bom".
Os Raio Solar recomeçam. Rui, o organista, tenta animar as hostes: "Vamos então ao tema de Quim Barreiros, a Cabritinha. Quem não gostava de ter uma para mamar?" Faz "Mééé" e manda descer do palco os miúdos que entretanto se sentaram à volta de Marisa, que dança exibindo o decote avantajado: "Larguem lá as tetas da cabrita!"
O pai de Rui e Marisa sonhava ser acordeonista. Como nunca conseguiu, ofereceu um acordeão aos filhos, que, com 12 e 13 anos, formaram uma banda na escola. Mais tarde comprou-lhes outro, de mais de mil contos, incentivando-os à profissionalização. Mas Marisa já tinha 17 anos e os namorados não viam com bons olhos a sua actividade artística. Fez-se escriturária. Só quando conheceu o actual marido, que é contabilista, pode voltar aos palcos. Ele aprendeu as técnicas de luz e som nos espectáculos e trabalha agora com ela. Senta-se num canto, ao lado do órgão e só se vê a sua cabecinha a congeminar efeitos com as luzes e a enviar jactos de fumo sobre a esposa e o cunhado.
"Há para aí um sururu, eu estou presa pelo beicinho", canta ela, e todos os habitantes de Arcas dançam, cheios de energia, correndo pelo espaço enorme, como numa festa country, no Kentucky.
Engrácia, a rigolota, não perdia isto por nada do mundo. Lá está ela, mesmo em frente ao palco. "As pessoas agora vestem-se muito bem, eu até me sinto inferior", confessara-nos. "Às vezes dizem: Olha a Engrácia, a francesa. E eu: calma aí! Governei a minha vida, mas sou portuguesa e a minha terra é Arcas!"
Na sua casa nova, no centro da aldeia, tem, por cima da cama, uma fotografia encaixilhada da estátua da Senhora das Seixas, com os brincos que ela própria lhe ofereceu, quando extraiu um seio, em França, operação que em Portugal nunca teria podido fazer. Lá, tem um quadro igual. "Tudo correu bem, graças à Senhora. Tenho muita fé nela. Parece que tem a minha vida nas mãos". Engrácia fala e o marido, Leontino, escuta-a em silêncio. Tal como o filho, Filipe, de 28 anos, que trabalha nas obras em França e também vem a Arcas todos os anos, no seu BMW azul-eléctrico. Engrácia fala a olhar para ele, com o neto ao colo, Dilen. "Ninguém imagina como era a vida aqui, há 30 ou 40 anos. Havia fome... Sentíamos que não éramos ninguém, sem a Senhora para nos proteger. Às vezes, numa hora fraquinha que a gente tem... quando tive a minha primeira depressão dos nervos, estava ali, deitada na cama, e vi-a, por trás dos meus dois filhos. Eu vi-a, a Senhora das Seixas. Chorei, chorei, chorei", conta Engrácia, a rigolota.
Domingo de manhã é a procissão. Parte da estrada principal e sobe pela aldeia, até à capela. Treze andores, cada um com o seu santo e decorado e patrocinado por uma família, são puxados por tractores. Entre eles, um cortejo de figurantes, homens, mulheres e crianças rigorosamente trajados de personagens bíblicas. Um letreiro nas costas diz: "São José", "São Rafael", "Judeu". A menina que vai de Santa Helena, de uns cinco anos, o menino Santo António, a menina Sagrado Coração de Maria vão muito cansados, as mordomas correm de um lado para o outro, a dar-lhes água. Filipe, o filho de Engrácia, conduz o tractor da Senhora da Conceição. Patrícia, uma menina loira e gorducha, de 12 anos e ténis cor de rosa, vai de Senhora das Seixas. Anda no 7º ano, os pais estão na Suíça. Atrás dos tractores vem uma jovem vestida de noiva, a Priora da procissão, depois os 60 músicos da Fanfarra da Portela de Vila Real, tocando uma marcha muito bela e quase fúnebre de Ilídio Costa, e ainda, debaixo de uma sombrinha segurada por quatro escudeiros, o bispo. Um bispo verdadeiro, não de fantasia. Ou pelo menos um ex-bispo. Depois vem o resto da população. Ouve-se falar francês. Vêem-se, ao longe, os contornos suaves, enganadores, da Serra da Lapa, entre as silhuetas altivas das casas dos emigrantes e as outras, de pedra, vergadas, aninhadas no chão.
Chegados ao promontório, instalam-se no palco, com a orquestra e o coro de crianças, o bispo e o pároco de Sever, António Furtado Duarte.
O Padre Toni chegara ao café Jardim, de Moimenta da Beira, no Seat diesel com 180 mil quilómetros de que é inseparável (não fosse o seu endereço de email Seatoni@iol.pt), para uma missão difícil: explicar-nos porque vêm os emigrantes às festas da aldeia, todos os anos. Divide-os em dois grupos: "Os que partiram nas décadas de 60 e 70 não perderam os valores tradicionais, partiram apenas para ganhar dinheiro. Os que foram em 80 e 90 têm outra mentalidade. Permanecem no estrangeiro até que os filhos acabem os cursos, para que fiquem lá. Muitos já não casam com portugueses e já não passam as férias todas na terra. Passam por lá, mas partem para Fátima e depois para o Algarve".
A festa da aldeia serve para o reencontro das várias gerações - a dos velhos, que ficaram, e estas duas dos que partiram. "Os velhos criticam os hábitos aculturados dos mais novos. Se uma rapariga usa mini-saia ou sai à noite, isso é censurado, há má língua. E isso tem uma função cultural reguladora. A festa promove o encontro inter-geracional, o encontro da grande família. Os casamentos são muito importantes. Mas a morte também. As pessoas vêm aos funerais. São momentos de tristeza imensa. Ainda há pouco tempo morreu aqui uma avó e juntou-se uma multidão, de todas as idades, vinda de todo o lado. Ela era uma referência para todas essas pessoas, uma espécie de Deus na terra".
A religião oferece os veículos para esse reencontro -s os santos, os casamentos, os baptizados, explica Toni, que nunca faz férias, para se dedicar aos projectos de erradicar a pobreza e o analfabetismo da região e da construção de dois lares de terceira idade. "As pessoas têm uma visão consumista da religião. Usam-lhe apenas os serviços que lhes convêm, sem qualquer ligação ao sagrado. E a Igreja adapta-se, colabora nessa visão consumista, vende-se".
No palco da Senhora das Seixas, D. Rafael, que é da região, foi bispo de Bragança e agora está reformado, começa o seu orbicular discurso, entre cânticos, sibilando os ss. "Senhora das Seixas, Raínha das Arcas, flor de todas as ladaínhas... Senhora da Conceição, Senhora da Apresentação, Senhora das Pombas Brancas, das Seixas de Teu nome, Senhora... Rainha de São José, Raínha das Seixas, Rainha das Pombas, Rainha da Paz. Ó Mãe, Ó Rainha das nossas almas Ó Rainha das Seixas!" É o bispo possível, o que se arranjou. Está caquético, mas sempre é um bispo, isso é que importa. Que aldeia das Beiras se pode gabar de ter um bispo na festa?
Estão todos a assistir. Engrácia e a família, o presidente da Junta, sempre atento ao quadro eléctrico...
São a procissão finalmente no adro, a miragem de um país à parte, a fazer o seu próprio caminho. Um país sozinho. Sozinhos subiram pela aldeia, com os seus 13 andores e o seu bispo. Sozinhos chegaram ao terreiro da festa.
Paulo Moura / Revista Pública (Público), 12/09/2004
terça-feira, 31 de julho de 2012
sábado, 28 de julho de 2012
E o Porto, Pimba!
A inesperada vitória autárquica de Rui Rio foi-me simpática, devo dizer. Tinha dele uma imagem de homem de princípios e de isenção, e não me foi indiferente que essa vitória, obtida em circunstâncias adversas, tivesse algo de eminentemente cívico contra uma óbvia aliança de poderes fáticos locais atrás de um outro candidato, de postura por demais arrogante.
Isto, sem me esquecer, contudo, de dois pontos de interrogação e mesmo perplexidade, a afirmação "o Porto 2001 foi uma oportunidade perdida" e o ponto programático de distinção cultural, a animação dos coretos. Interpretei-as como argumentos eleitorais face à principal candidatura adversária. Teriam ao menos contado o número de coretos ainda realmente existentes? E quanto à "oportunidade perdida", quis supor que a apreciação traduzia um certo estado de espírito de uma civildade burguesa portuense, não esquecida do que entendeu ter sido uma afronta a Artur Santos Silva, e que eventualmente desejaria uma ainda maior cativação de verbas a valores patrimoniais - na ignorância da astronómica percentagem atribuída à reabilitação urbana no Porto 2001 nomeadamente se comparada com a da programação, muito mas muito menor. Nada de taxativamente irreparável, pensei. Fui ingénuo, como é patente.
O investimento feito no Porto 2001, em estritos termos financeiros mas também de práticas simbólicas e de consumos culturais, não foi de restrito âmbito local, tendo até naturalmente exigido um vultuosa participação do Estado central, além de que é suposto enquadrar-se num conceito europeu. Ainda menos razões há então para se restringirem ao âmbito da cidade os ecos da política cultural de hetacombe e populismo ridículo que, tomando o rancor e a paranóia de perseguição como determinantes da sua pragmática, Rui Rio vem encetando. E, de resto, como se pode verificar na imagem, contando mesmo com o apoio do ministro da Cultura.
A nível nacional temos vindo a saber como o executivo camarário se tem empenhado em drásticos cortes orçamentais no apoio à Fundação da Ciência e Desenvolvimento, que engloba o Teatro do Campo Alegre, ou ao Fitei, o Festival de Teatro de Expressão Ibérica. Que o orçamento seja de rigor, compreende-se. Que os mais danosos cortes ocorram na Cultura como se esta fosse o pelouro dos "restos" é inaceitável, e para mais é, nas actuais circunstâncias do Porto, um erro político e estratégico que se arrisca a ser, este sim, irreparável.
A famosa "oportunidade perdida" foi então uma auto-premonição: Rio estava apostado em fazê-la perder! È suicidário e altamente perdulário (inclusive para o erário público, e de que maneira!) que o investimento feito no Porto 2001 fique sem "pontes para o futuro", ou seja, retirando às actividades culturais o mínimo de condições de continuidade que permitam o aproveitamento e a rentabilização das potenciais sementes deixadas por um ano de excepção. O que se cerceia e corta agora, em 2002, corre o gravíssimo risco de muito dificilmente vir a ser "recuperável".
No PÙBLICO de terça-feira, no 1º caderno, nacional, li que o vereador Paulo Cutileiro tinha avançado como uma das razões para o corte orçamental na Fundação que as actividades daquela "não chegam a todos os portuenses" - extraordinário, como se exceptuando o saneamento básico, eventualmente transportes públicos e pouco mais, toda e qualquer câmara não investisse também em redes e actividades que "não chegam a todos" os munícipes!
Mas na terça, por mim já não estava desprevenido. Na edição impressa do caderno Local do Porto do dia anterior tinha visto um mirabolante "instantâneo", de tal modo indiciador que me parece pertinente propor a sua republicação a nível nacional. Diz a foto respeito a uma notícia de título "Rui Rio rivaliza com rei da música 'pimba'", nem mais! O "rei", é claro, é Emanuel - o rei, que digo eu?, o criador, o autêntico, o do refrão fundador "e nós pimba"! Pois que aconteceu de tão importante que, ao apelo pimba, até o ministro Pedro Roseta "ressuscitou" como se comprova, ele por quem já temíamos, que do ministério só tínhamos vindo a ter notícias pelo secretário de Estado Amaral Lopes? Pois sucedeu que houve uma festa da Rádio Festival, a famosa interface do comércio e consumos "pimba", um evento da maior importância cultural, em relação ao qual a câmara do Porto não descortinou razões orçamentais imperiosas que impedissem o apoio. Ou duvidam que Emanuel, esse sim (mas já agora, não se esqueçam de Àgata ou Romana), é cultura "para todos"?
É-o em estado potencial ou propredêutico, pelo menos, como o esclareceu, fidelíssimo à sua concepção paternalista, escolástica e bota de elástico, o ministro Roseta: "devemos aproveitar estes momentos para chamar a atenção dos adultos que não vão à escola para os grandes nomes da literatura e da música", assim a modos que começam eles com o Emanuel e depois fazemos com que passem a gostar de Bach ou Haydn, se posso citar dois autores que creio serem particularmente caros ao melómano Pedro Roseta. E Rio, que estava ali a fazer política mais terra a terra, logo pôs a festa de Emanuel em contraponto ao Campo Alegre: "Em vez de apoios monstruoso, devemos juntar o útil ao agradável. (...) A Câmara deve dar à população momentos de alegria, porque são pessoas que ganham pouco e têm uma vida difícil". Já que o contraponto foi feito por Rio, e as declarações são suficientemente explícitas, ficamos mesmo interrogativos sobre se à Ciência e Desenvolvimento o edil portuense não preferirá antes uma refundação para a Alegria no Trabalho. Ora aí está: e o Porto, pimba!
Mas que me deu para ter pensado que Rio representava uma certa civildade burguesa portuense, digamos que os mecenas de Serralves? De estupefacção em estupefacção será que ainda haveremos de ver Santana Lopes dar lições de chá a Rio? Pretende este demonstrar que, diferentemente do sucedido com e após Lisboa-94, o impulso do Porto-2001 não permitirá um aumento das apetências e consumos culturais? Mas foi este mesmo Rui Rio que os portuenses quiseram eleger?
Lá por ter sido ingénuo, não quero também ser agora injusto: a presença animada do ministro Roseta confere um outro enfoque político à coisa. Quem sabe se Rio não estará na "vanguarda" das políticas culturais do PSD, de um desejo de "pimbização" em curso? E nós? Pimba!
Augusto M. Seabra / Público, 28/07/2002
Isto, sem me esquecer, contudo, de dois pontos de interrogação e mesmo perplexidade, a afirmação "o Porto 2001 foi uma oportunidade perdida" e o ponto programático de distinção cultural, a animação dos coretos. Interpretei-as como argumentos eleitorais face à principal candidatura adversária. Teriam ao menos contado o número de coretos ainda realmente existentes? E quanto à "oportunidade perdida", quis supor que a apreciação traduzia um certo estado de espírito de uma civildade burguesa portuense, não esquecida do que entendeu ter sido uma afronta a Artur Santos Silva, e que eventualmente desejaria uma ainda maior cativação de verbas a valores patrimoniais - na ignorância da astronómica percentagem atribuída à reabilitação urbana no Porto 2001 nomeadamente se comparada com a da programação, muito mas muito menor. Nada de taxativamente irreparável, pensei. Fui ingénuo, como é patente.
O investimento feito no Porto 2001, em estritos termos financeiros mas também de práticas simbólicas e de consumos culturais, não foi de restrito âmbito local, tendo até naturalmente exigido um vultuosa participação do Estado central, além de que é suposto enquadrar-se num conceito europeu. Ainda menos razões há então para se restringirem ao âmbito da cidade os ecos da política cultural de hetacombe e populismo ridículo que, tomando o rancor e a paranóia de perseguição como determinantes da sua pragmática, Rui Rio vem encetando. E, de resto, como se pode verificar na imagem, contando mesmo com o apoio do ministro da Cultura.
A nível nacional temos vindo a saber como o executivo camarário se tem empenhado em drásticos cortes orçamentais no apoio à Fundação da Ciência e Desenvolvimento, que engloba o Teatro do Campo Alegre, ou ao Fitei, o Festival de Teatro de Expressão Ibérica. Que o orçamento seja de rigor, compreende-se. Que os mais danosos cortes ocorram na Cultura como se esta fosse o pelouro dos "restos" é inaceitável, e para mais é, nas actuais circunstâncias do Porto, um erro político e estratégico que se arrisca a ser, este sim, irreparável.
A famosa "oportunidade perdida" foi então uma auto-premonição: Rio estava apostado em fazê-la perder! È suicidário e altamente perdulário (inclusive para o erário público, e de que maneira!) que o investimento feito no Porto 2001 fique sem "pontes para o futuro", ou seja, retirando às actividades culturais o mínimo de condições de continuidade que permitam o aproveitamento e a rentabilização das potenciais sementes deixadas por um ano de excepção. O que se cerceia e corta agora, em 2002, corre o gravíssimo risco de muito dificilmente vir a ser "recuperável".
No PÙBLICO de terça-feira, no 1º caderno, nacional, li que o vereador Paulo Cutileiro tinha avançado como uma das razões para o corte orçamental na Fundação que as actividades daquela "não chegam a todos os portuenses" - extraordinário, como se exceptuando o saneamento básico, eventualmente transportes públicos e pouco mais, toda e qualquer câmara não investisse também em redes e actividades que "não chegam a todos" os munícipes!
Mas na terça, por mim já não estava desprevenido. Na edição impressa do caderno Local do Porto do dia anterior tinha visto um mirabolante "instantâneo", de tal modo indiciador que me parece pertinente propor a sua republicação a nível nacional. Diz a foto respeito a uma notícia de título "Rui Rio rivaliza com rei da música 'pimba'", nem mais! O "rei", é claro, é Emanuel - o rei, que digo eu?, o criador, o autêntico, o do refrão fundador "e nós pimba"! Pois que aconteceu de tão importante que, ao apelo pimba, até o ministro Pedro Roseta "ressuscitou" como se comprova, ele por quem já temíamos, que do ministério só tínhamos vindo a ter notícias pelo secretário de Estado Amaral Lopes? Pois sucedeu que houve uma festa da Rádio Festival, a famosa interface do comércio e consumos "pimba", um evento da maior importância cultural, em relação ao qual a câmara do Porto não descortinou razões orçamentais imperiosas que impedissem o apoio. Ou duvidam que Emanuel, esse sim (mas já agora, não se esqueçam de Àgata ou Romana), é cultura "para todos"?
É-o em estado potencial ou propredêutico, pelo menos, como o esclareceu, fidelíssimo à sua concepção paternalista, escolástica e bota de elástico, o ministro Roseta: "devemos aproveitar estes momentos para chamar a atenção dos adultos que não vão à escola para os grandes nomes da literatura e da música", assim a modos que começam eles com o Emanuel e depois fazemos com que passem a gostar de Bach ou Haydn, se posso citar dois autores que creio serem particularmente caros ao melómano Pedro Roseta. E Rio, que estava ali a fazer política mais terra a terra, logo pôs a festa de Emanuel em contraponto ao Campo Alegre: "Em vez de apoios monstruoso, devemos juntar o útil ao agradável. (...) A Câmara deve dar à população momentos de alegria, porque são pessoas que ganham pouco e têm uma vida difícil". Já que o contraponto foi feito por Rio, e as declarações são suficientemente explícitas, ficamos mesmo interrogativos sobre se à Ciência e Desenvolvimento o edil portuense não preferirá antes uma refundação para a Alegria no Trabalho. Ora aí está: e o Porto, pimba!
Mas que me deu para ter pensado que Rio representava uma certa civildade burguesa portuense, digamos que os mecenas de Serralves? De estupefacção em estupefacção será que ainda haveremos de ver Santana Lopes dar lições de chá a Rio? Pretende este demonstrar que, diferentemente do sucedido com e após Lisboa-94, o impulso do Porto-2001 não permitirá um aumento das apetências e consumos culturais? Mas foi este mesmo Rui Rio que os portuenses quiseram eleger?
Lá por ter sido ingénuo, não quero também ser agora injusto: a presença animada do ministro Roseta confere um outro enfoque político à coisa. Quem sabe se Rio não estará na "vanguarda" das políticas culturais do PSD, de um desejo de "pimbização" em curso? E nós? Pimba!
Augusto M. Seabra / Público, 28/07/2002
terça-feira, 10 de julho de 2012
O «bicho» está cansado
Ou o azar foi nosso ou Iran Costa, mais conhecido actualmente em Portugal pela alcunha de «o bicho», pareceu sempre demasiado cansado e ensonado, sem ponta do entusiasmo com que a sua canção tem sido recebida nas «charts». Naquela manhã de Outubro, nos estúdios da Valentim de Carvalho, além de gravar uma entrevista para o programa Made in Portugal, Iran atendeu de seguida uma revista feminina, o PÚBLICO e a «TV Guia».
«O que é que eu tenho a ver com o Emanuel ou a Ágata?», pergunta, boné ao contrário, ouvido sílaba a sílaba pela jovem jornalista da revista feminina, que não arredou pé da mesa apesar de as entrevistas serem individuais. «Eu faço dance music, eles fazem música ligeira. Mas, pronto, agora somos todos pimba! Acho isso até engraçado. Se ser pimba é vender cinco discos de platina, se ser pimba é ter 50 mil pessoas a assistir em Viseu, se ser pimba é ser querido pelas crianças e pelos velhos, então eu sou pimba! Ser intelectual é o quê, o «Talvez foder»? A única diferença entre mim e o Pedro Abrunhosa é que ele faz funk jazz e eu dance music!»
Pimba ou não, Iran Costa é um fenómeno que até já chegou ao Brasil, de onde partiu sem glória à procura do sucesso em Portugal. Natural de Porto Franco, uma cidadezinha do interior do estado do Maranhão, Iran partiu para Goiânia aos oito anos, para onde o pai, fotógrafo, foi à procura de uma vida melhor. «Éramos muito pobres na época», relembra Iran Costa. «Aos 11 anos vendia jornais na rua. Estudava de tarde e às quatro da manhã saía para vender os jornais. Dividíamos o trabalho por bairros e eu sempre ficava numa esquina. Mas a concorrência era muito grande e muitas vezes voltava chorando para casa.»
Mais tarde, trabalhou ainda como auxiliar de escritório e numa associação de menores gerida por padres, onde aprendeu a lidar com o telefone. Em Redenção, no Pará, trabalhou como bancário, mas, como confessa sem rodeios, «não tinha muito a ver» com ele.
Aos 18 anos, começou a trabalhar na rádio, na pequenina Rádio Oriente, de Redenção, de onde saltou mais tarde para a rede Cidade, de Fortaleza. «Fiz todo o tipo de programas, produzi programas, coordenei outros, fiz tudo durante oito anos.» Enquanto trabalhava na rádio, montou uma equipa que organizava festas. «Comecei a animar festas como DJ. Passava funky e rap...» Na rádio, iniciou-se a cantar em cima das outras músicas, até que gravou o primeiro disco, «Penso em Ti», em Fortaleza.
O sucesso, esse não existiu. «O Brasil é muito grande, a concorrência é enorme, são milhares de artistas batalhando por um lugar no céu, por uma oportunidade», justifica.
Alguém em Portugal ouviu o disco, que foi cair nas mãos da Vidisco. Iran gravou de novo esse primeiro disco, «Penso em Ti», de novo sem grande êxito. Deixar a rádio e o Brasil também não foi fácil. «O povo português é totalmente diferente. O brasileiro é sofrido mas alegre, passa facilmente por cima do passado, o português é mais ressentido.»
«O Bicho» transformou-se em sucesso repentinamente. «'Távamos sempre acreditando no trabalho. Escolhemos esta música, porque, apesar de tradicional, permitia fazer uma coisa nova. O êxito foi maior do que a gente esperava, estamos chegando ao final da `tournée' e ainda não parámos.»
Agora, Iran prepara-se para atacar o mercado dos emigrantes na Suíça, França, Alemanha e Luxemburgo e lançar o «Bicho» em Espanha e no Brasil, onde já foi notícia nacional graças a Manuel Monteiro. «Lá, essa história do PP foi anedota.»
Público, Nov/1999
«O que é que eu tenho a ver com o Emanuel ou a Ágata?», pergunta, boné ao contrário, ouvido sílaba a sílaba pela jovem jornalista da revista feminina, que não arredou pé da mesa apesar de as entrevistas serem individuais. «Eu faço dance music, eles fazem música ligeira. Mas, pronto, agora somos todos pimba! Acho isso até engraçado. Se ser pimba é vender cinco discos de platina, se ser pimba é ter 50 mil pessoas a assistir em Viseu, se ser pimba é ser querido pelas crianças e pelos velhos, então eu sou pimba! Ser intelectual é o quê, o «Talvez foder»? A única diferença entre mim e o Pedro Abrunhosa é que ele faz funk jazz e eu dance music!»
Pimba ou não, Iran Costa é um fenómeno que até já chegou ao Brasil, de onde partiu sem glória à procura do sucesso em Portugal. Natural de Porto Franco, uma cidadezinha do interior do estado do Maranhão, Iran partiu para Goiânia aos oito anos, para onde o pai, fotógrafo, foi à procura de uma vida melhor. «Éramos muito pobres na época», relembra Iran Costa. «Aos 11 anos vendia jornais na rua. Estudava de tarde e às quatro da manhã saía para vender os jornais. Dividíamos o trabalho por bairros e eu sempre ficava numa esquina. Mas a concorrência era muito grande e muitas vezes voltava chorando para casa.»
Mais tarde, trabalhou ainda como auxiliar de escritório e numa associação de menores gerida por padres, onde aprendeu a lidar com o telefone. Em Redenção, no Pará, trabalhou como bancário, mas, como confessa sem rodeios, «não tinha muito a ver» com ele.
Aos 18 anos, começou a trabalhar na rádio, na pequenina Rádio Oriente, de Redenção, de onde saltou mais tarde para a rede Cidade, de Fortaleza. «Fiz todo o tipo de programas, produzi programas, coordenei outros, fiz tudo durante oito anos.» Enquanto trabalhava na rádio, montou uma equipa que organizava festas. «Comecei a animar festas como DJ. Passava funky e rap...» Na rádio, iniciou-se a cantar em cima das outras músicas, até que gravou o primeiro disco, «Penso em Ti», em Fortaleza.
O sucesso, esse não existiu. «O Brasil é muito grande, a concorrência é enorme, são milhares de artistas batalhando por um lugar no céu, por uma oportunidade», justifica.
Alguém em Portugal ouviu o disco, que foi cair nas mãos da Vidisco. Iran gravou de novo esse primeiro disco, «Penso em Ti», de novo sem grande êxito. Deixar a rádio e o Brasil também não foi fácil. «O povo português é totalmente diferente. O brasileiro é sofrido mas alegre, passa facilmente por cima do passado, o português é mais ressentido.»
«O Bicho» transformou-se em sucesso repentinamente. «'Távamos sempre acreditando no trabalho. Escolhemos esta música, porque, apesar de tradicional, permitia fazer uma coisa nova. O êxito foi maior do que a gente esperava, estamos chegando ao final da `tournée' e ainda não parámos.»
Agora, Iran prepara-se para atacar o mercado dos emigrantes na Suíça, França, Alemanha e Luxemburgo e lançar o «Bicho» em Espanha e no Brasil, onde já foi notícia nacional graças a Manuel Monteiro. «Lá, essa história do PP foi anedota.»
Público, Nov/1999
Subscrever:
Mensagens (Atom)