15-CORRIJA-SE A PERCENTAGEM
Anda tudo doido por causa da música portuguesa. Deve ser porque está a vender menos. É a crise. Todos sofrem com ela. O consumidor, coitado, é quem sofre mais. Desesperado, deita as mãos à cabeça, sem saber o que fazer aos 100 contos que disponibiliza todos os meses só para comprar discos portugueses. Eu próprio, ando numa angústia, a tentar adivinhar a próxima jogada de Pedro Ayres de Magalhães ou a data de lançamento do muito aguardado disco de ópera de António Manuel Ribeiro. Já nem falo do horror que deve ser para alguns a expectativa de saber se o próximo disco do Pedro Abrunhosa vai vender menos 356 ou mais 282 unidades que o anterior. O futuro o dirá. Até porque, como toda a gente sabe, muito do futuro da música portuguesa passa pelo homem dos óculos escuros. A famigerada lei da rádio está na ordem do dia. Os locutores de serviço são uns idiotas ou agentes ao serviço do Mal. As editoras clamam que eles não passam discos portugueses ao mesmo tempo que inundam as estações com material estrangeiro (leia-se ao serviço do Imperialismo) de quarta ordem que não venderá nunca mas serve para aumentar a confusão nas prateleiras das lojas. Ninguém cumpre os 50%. A principal medida, medida imediata, urgente, redentora, é a criação, já, de uma polícia especializada que, à paisana, entre portas adentro das emissoras, confira números e vírgulas e leve na ramona, sem dó nem piedade, os prevaricadores (leia-se traidores à pátria). Sei mesmo do caso de um conhecido homem da rádio que, antecipando já os dias de terror que se avizinham, sempre que põe no ar o disco do grupo pop da Transilvânia da sua preferência, corta o som. Não vá o diabo tecê-las.
Quanto a mim, junto-me ao grupo dos que consideram a percentagem de 50% irrealista. Penso que a mais correcta seria na ordem dos 47,43 por cento, com uma margem de manobra (de modo a evitar prisões prematuras) de 0,57 %, por excesso, e 0,43%, por defeito. Estou convicto que o problema se resolveria deste modo. Claro que, para respeitar equivalências e a verdade percentual da M. P. (Música Portuguesa) 46.35% daquele total seria reservado para o José Cabeleira, Marta, José Alberto Reis, Sérgio Peres Orquestra, Eduardo Sant'ana (autor do hino «Eu sou um pinga amor»), Cabanelas Música, Chiquita, Ernesto Cedovim (autor do grande sucesso «Telefonema para Cristina»), Zé Carvalho, Carla Ribeiro, Rute Marlene e todos os paladinos da genuína música portuguesa que levam a alegria e a grande arte aos recantos mais afastados do nosso Portugal. Os restantes 1,08% seriam distribuídos pelos outros. Um acto de justiça. Não devemos no entanto esperar para breve este estado ideal de coisas. Por enquanto, é uma utopia. Mas a Idade de Ouro da M. P., que ninguém duvide, mais tarde ou mais cedo, há-de chegar. Para já, temos que nos contentar com a troca de impressões e fazer de conta que todos estão a puxar para o mesmo lado. Mentes mais perversas jurariam a pés juntos (pobres esquizofrénicos!) que há quem esteja interessado em queimar, logo à nascença, certos discos de M. P., independentemente da sua qualidade. Insistem os mesmos patarocos que, periodicamente, todas as estações de rádio e de televisão, todos os jornais, todas as revistas, todas as entrevistas, todas as conversas com guião, salvo honrosas excepções, se centram num único nome, num único disco, até à exaustão. Como se a M. P., durante essa semana ou esse mês, se reduzisse em exclusivo ao afortunado que os deuses elegeram. Durante esse período nada mais existe, tudo o resto, todos os outros discos e todos os outros artistas, são deixados ao abandono, cada qual que se amanhe, há estratégias a cumprir. Diz o lunático. Milagre! O eleito atingiu vendas astronómicas, chegando, dois minutos apenas após o lançamento, a disco de hiper/Internet/Platina, com 150 exemplares vendidos só no Hipermercado (leia-ae grande superfície) da Musgueira. Os outros, zero! Escândalo! Ninguém protege a música portuguesa! Ninguém passou na rádio! Ninguém quis saber!! E os 50%? Safados! Deviam ser todos presos!
Ninguém, ninguém, poderá mudar o mundo...
Há coisas complicadas, secretas, que se dizem baixinho, de preferência em mongol. Não há muita música portuguesa de qualidade. Pois não. Mas há alguma. Pois há! Nem todos podem vender o mesmo que o Abrunhosa. Pois não! Mas todos os discos têm um público e áreas de divulgação específicas. Pois têm. Quer dizer que o ideal seria potencializar ao máximo as possibilidades de chegar ao público, e de venda, de cada um, exigindo-se para e por isso cultura e conhecimento (e vontade real) da parte de todos os agentes envolvidos, desde o AR e do promotor, ao locutor e ao empregado de balcão? Sim, quer dizer! Ah, bem, então cada disco, com a sua estética e potencial comercial específicos, deveria ser encaminhado para determinadas rádios, jornais, revistas ou lojas sensíveis ao seu conteúdo? Isso mesmo. De modo a tirar o máximo rendimento? Vês como compreendes? Um disco com hipóteses de vender 10 mil deveria apostar, dentro da sua escala, numa estratégia que visasse atingir, pelo menos, esse número.
Outro, mais «elitista», incluído numa área musical exterior ao «mainstream», com possibilidades de vender 1000, deveria, também à sua escala, ser «trabalhado» de maneira a chegar, por sua vez, a esse número, ou mais. Uma questão de escalas, portanto, de escolha acertada dos canais de divulgação e comercialização. Parece fácil? É difícil? Óbvio demais?
Ou alguém quer de facto queimar alguém e a M. P. não passa de alibi para quem unicamente pretende encher a barriga em tempo de vacas gordas? É preciso fazer algo e fazê-lo depressa. As Rutes Marlenes e os José Rezas estão ansiosos, e com razão. A música portuguesa sofre em silêncio enquanto assiste à luta de vida ou de morte entre os Blur e os Oasis. Quando chegará o tempo em que veremos os Kaganisso e os Cabanelas Música (15 mil watts de som, 20 mil watts de luz) a disputarem o ceptro do Lusipop («Lusitano pop», equivalente nacional do «Britop»)?. Pensando melhor, subo para os 47,81% (46, 30% para os verdadeiros artistas, 1,51%, para os moinantes).
Nota: Os nossos agradecimentos ao guia «Artistas & Espectáculos», verdadeira bíblia da M. P., sem o qual nunca saberíamos da existência de alguns dos artistas citados (por exemplo, Pedro Abrunhosa). Os estafermos dos locutores não divulgam!
Fernando Magalhães, jornalista do «Público», Jornal Blitz nº 591