quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A educação dos gostos

É curiosa a forma como alguma imprensa e alguns jornalistas abordam o fenómeno da música pimba: à sobranceria intelectual de uns, soma-se o carácter leigo e superficial na análise de outros. É extraordinariamente fácil invocar argumentos mais ou menos invectivos que remetam esta casta musical para um subserviente estado de futilidade e de redundância artística. O que é mais difícil de descortinar e de analisar é toda a envolvência sócio-cultural que favoreceu o despontar maciço e quase despótico desta manifestação musical, assim como procurar uma justificação plausível para o inultrapassável sucesso que suscita entre o povo português (temática suficientemente dissecada por Jorge Lima Barreto na sua arguta análise musicológica e semiótica no livro «Musa Lusa»). Quer se queira quer não, a inefável realidade é que a música pimba - apesar do padecimento constrangedor ao nível das formas estéticas e do conteúdo linguístico-semântico -, exerce uma irrefutável função socializadora e mobilizadora de massas; por isso não me repugna nem me surpreende, por ser tão óbvia a intenção, que os candidatos à Autarquia da Guarda se façam rodear de cantores pimba nas suas campanhas políticas. Há uma lógica estratégica por detrás desta iniciativa que não tem a ver propriamente com a veiculação de valores culturais: a presença destes artistas não belisca em nada a estirpe política dos candidatos pela simples razão que servem apenas como isco para chamarem gente aos comícios, da mesma forma que Quim Barreiros esgota as festas académicas por esse país fora. As coisas são como são: na política, não se seduzem as massas ao som de Diamanda Galás, de Carlos Zíngaro ou de Schönberg (Guterres teve êxito com Vangelis, mas isso é outra história). Por outro lado, Luís Filipe Reis agradece que assim seja pelo que o oportunismo existe das duas partes.

Joaquim Igreja afirmou nestas páginas que não acredita na imagem de uma juventude de gostos musicais inconformistas, visto que a "lógica comercial submerge tudo". Tudo? Não creio. Apesar do estonteante processo de massificação e estandardização dos modelos culturais vigentes, da tenebrosa capacidade de coacção/alienação perpetrada pelos mass media que viabiliza o fenómeno pimba, apesar ainda, da gritante iliteracia existente em Portugal, tenho a convicção inabalável que subsiste no nosso país uma parcela considerável da juventude que, de forma crítica e conscienciosa, se desmarca da cultura da frivolidade e, no dizer de Lipovetsky, do «império do efémero», procurando modelos de identificação culturais alternativos (cf. a «imensa minoria» que ficou órfã pelo desaparecimento da única rádio com preocupações culturais e educativas, a XFM).

Numa recente Oficina Musical para jovens músicos, por mim orientada, deparei-me com cerca de vinte jovens que tinham as ideias muito bem assentes, que sabiam distinguir o essencial do acessório, que sabiam compreender a multiplicidade de expressões artísticas em geral e musicais em particular, que tanto gostavam de rock como de free-jazz, de música experimental como de clássica. Interpelados sobre o que opinavam acerca do fenómeno pimba, um deles foi sucinto mas lapidar na apreciação: "simplista e oportunista". Simplista já se sabe como e porquê, oportunista porque versada para a fácil rentabilização económica e para o fomento do «mau gosto instituído», no dizer de Sérgio Godinho. O gosto musical educa-se e forma-se ao longo do tempo, consoante o tipo de aculturação a que se é sujeito, pelo que existem muitos jovens que odeiam tudo quanto representam as Spice Girls ou o Pedro Abrunhosa.

Contudo, no lamacento mundo da música pimba, nem tudo o que parece é: a cantora Romana, sobrinha da Ágata, afirmou recentemente na televisão que apenas canta canções pimba porque só desta forma consegue ganhar muito dinheiro, e que se pudesse, faria música de que realmente gosta: tecno hardcore, estilo musical situado nos antípodas do pimba e do gosto popular. Neste caso, sim, a tal lógica comercial, o apelo da fama emergente e do dinheiro escorreito submerge a própria auto-vontade de criar a música de que se gosta, premissa que não se coaduna, mesmo assim, com todas as circunstâncias da vida cultural/musical portuguesa e dos desejos de toda a juventude.

Ao não conceber ou compreender a existência e necessidade de gostos musicais inconformistas, alheados das manifestações de moda e do consumismo desbocado ( constate-se a verdadeira paranóia das vendas do disco «A Candle in the Wind» de Elton John), é pactuar com um certo pensamento que glorifica a iniquidade decadentista, que subalterniza e empobrece alguns valores primordiais para a fundamentação de uma (contra)cultura alternativa: o direito a assumir a diferença nos gostos, no estilo de vida, na postura exterior e mental (ser-se um «moderno primitivo», por exemplo), o direito a cogitar perturbando mentalidades instituídas segundo padrões de vida que não se ensinam na escola, o direito a desencardir ignóbeis parâmetros sócio-culturais , o direito a criar formas de arte provocatórias, incómodas e agressivas para o senso comum.

Por mais violento que seja o marketing comercial, por mais extenuada e opressora se torne a sociedade mediatizada nunca se conseguirá a sonegação total das formas livres de pensar, optar e de agir. Haverá sempre quem prefira ser «outsider» do sistema estabelecido que usurpa a vontade e corrói os valores. Para bem do ideal democrático, da liberdade de expressão e da própria sanidade mental.

Victor Afonso, Professor de Educação Musical
Terras da Beira, 18/09/1997
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