segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Futuro Radioso

CARÍSSIMOS leitores, ontem à noite sonhei com a reforma do século. Não, não foi um pesadelo, foi um sonho. Estava na Praça Sony, no meio de uma esmagadora multidão de portuguesas e portugueses. No palco, o novo bardo lusitano, Quim Barreiros, interpretava, cheio de coesão, uma canção muito patriótica sobre a Internet. Às tantas, a sua voz foi abafada por um coro celestial vindo do alto da Torre de Cabo Ruivo. A multidão olhou para cima e para trás. Numa nuvem tão amarela como as novas bandeiras do PS, o «nosso primeiro» descia suavemente à Terra, rodeado por querubins com pronúncia do Norte. Logo se ouviram trombetas do lado da Torre Vasco da Gama. Noutra nuvem - esta, porém, cor-de-rosa - o «nosso Presidente» também descia suavemente à Terra, rodeado por querubins com um ar muito «british». Calou-se o Quim Barreiros e calou-se a multidão. O palco transformou-se numa enorme Tenda dos Milagres. Foi então que o «nosso Presidente» rompeu o silêncio e proclamou, certamente inspirado pelos Monty Python e num inglês irrepreensível: «And now, for something completely different, here we have the Regionalization!». Loucura na praça (na da Expo-98, não na de Barrancos). Finalmente a regionalização e, com ela, um futuro radioso para todas as portuguesas e portugueses!

Em sonhos, eu vi esse futuro radioso e quero dar testemunho. A regionalização é a varinha de condão, é a poção mágica, é a banha da cobra, é a panaceia que dá vida aos mortos e saúde aos enfermos, faz crescer o cabelo aos carecas e torna as feias bonitas. Com a regionalização, nada é impossível. Os cegos vêem, os mudos falam, os surdos ouvem. A regionalização lava mais branco, não faz pregas no peito nem rugas no colarinho. Com a regionalização, passará a haver sol na eira e chuva no nabal, brotará petróleo no Beato e todos os eucaliptos se transformarão em árvores das patacas. Cada português passará a ter uma casa e à porta de cada casa passará uma auto-estrada (ou um IP ou um IC). Também passará a haver uma escola em cada esquina, uma universidade em cada bairro e um hospital em cada freguesia. E haverá metropolitanos para todos - não só em Lisboa e no Porto mas também em Aljezur, Cacilhas e Freixo-de-Espada-à-Cinta. E Ferraris. E microndas. E telemóveis. E - claro! - antenas parabólicas e descodificadores para ver o futebol no SporTV.

A regionalização é o novo milagre das rosas, que se transformam em pão (e não este em rosas) no regaço de todos os presidentes das juntas regionais (tal como já sucede, aliás, no regaço do doutor Alberto João Jardim). E assim, com tanto pão, é uma autêntica revolução gastronómica que se prepara. De fazer inveja a Galileu e Copérnico. Porque a regionalização é o novo Sol da Terra, em volta do qual passarão a girar os estômagos de todas as portuguesas e portugueses. Sim, eu vi o futuro radioso. Nele haverá acepipes de arromba e iguarias prodigiosas - até hoje desconhecidas do «homo lusitanus», mas absolutamente dignas de Pantagruel - tais como o cozido à portuguesa, a feijoada à transmontana, as tripas à moda do Porto e a açorda à alentejana (sem esquecer as favas com chouriço e entrecosto, evidentemente). Também haverá vinho, a rodos e a granel, de fazer estalar o céu da boca. E o vinho será tinto e será branco - mas, atenção, em algumas regiões do país também será verde. Como o Sporting, que voltará, finalmente, a ser campeão, logo que Porto e Benfica comecem a jogar na Superliga (o que é tão certo como Bill Clinton passar a ter juízo e Boris Ieltsin deixar de beber «vodka»). E haverá, ainda, o Boi Ápis de Barrancos, que será morto e renascerá todos os anos - para gáudio dos nossos estômagos, iracúndia dos juízes, repouso da GNR, paz e sossego do doutor Armando Vara.

Sim, eu vi o futuro radioso. E digo-lhes que a regionalização vai ser - sobretudo quando cantada por Quim Barreiros - o Viagra dos portugueses. Com ela, haverá um espantoso incremento da procriação, tão necessário ao povoamento do Portugal interior, recôndito e desertificado. Sem ela, o desastre demográfico é inevitável, os portugueses tornar-se-ão uma espécie em vias de extinção e o «homo lusitanus» passará a ser tão raro como o lince da Malcata.

Vão por mim. Não estejam assim tão sisudos. Façam como os Monty Python. Divirtam-se à brava com tudo isto. Não deixem que o ar fique tão carregado como nos tempos do cavaquismo. Olhem que uma reforma destas não se faz todos os séculos. E, feita esta, não será preciso fazer mais nenhuma.

Alfredo Barroso / Expresso, 12/09/1998