Um molho de garrafas de cerveja emoldurando a mesa da esplanada do café de Almada onde conversamos, cabelo comprido puxado para trás, camisa de flanela aberta sobre uma camisa de ganga também aberta e deixando ver uma «sweat-shirt», Nuno Tonelo, 30 anos, confessa-se: «Convenhamos... eu sou tudo menos um escritor... não tenho problema nenhum em aceitar isso.»
Com o 12º ano, um curso de história e cronologia da música em Londres, que ele próprio se apressa a desvalorizar, ex-«disc jockey», ex-luminotécnico e confesso «gigolo», há cerca de um ano, Nuno, até aí um ilustre desconhecido, sentou-se à secretária a escrever durante 48 horas. «Bom, não foram ininterruptas, foram para aí 12 horas e, no outro dia, foi o dia todo.» Nuno, que se habituou a escrever nos dias que lhe corriam mal -- «apanho uma bebedeira e em vez de fazer uma desordem, escrevo» --, derramou um texto mínimo e autobiográfico sobre os seus dias como «gigolo». «Tudo o que lá está aconteceu, só mudei alguns nomes», explica.
A sua namorada da altura leu, passou a computador e pressionou-o a enviar para as editoras. «Enviámos para 20, seis responderam a dizer que não estavam interessadas, a sétima, a Europa-América, decidiu publicar.
O facto de alguém ter decidido publicar o texto já foi suficientemente surpreendente para Nuno. «`Tava à espera de tudo menos que fosse publicado», explica. Género é coisa que não cultiva. «Eu não tenho género porque não sei o que `tou a escrever, vai saindo.» Influências, também não. «Nenhumas», responde, quando lhe falamos em influências literárias, embora afirme nutrir especial afecto pela obra de Mário de Sá Carneiro e Oscar Wilde.
A obra resume-se a 145 páginas impressas numa letra enorme -- «presumo que foi para ocupar espaço» -- que se lêem em 45 minutos e que focam a vida autodestrutiva do «gigolo» Nuno e dos seus amigos noctívagos. Nuno passa a vida a beber Jack Daniels em festas onde está sempre tudo a «partir», até ser contratado por uma agência que serve mulheres casadas que desejam sexo.
O livro inclui descrições de bacanais, diálogos ao telefone e páginas de um só parágrafo como este: «O Jorge telefona-me de manhã convidando-me para almoçar. Aceito, na condição de o almoço ser às três da tarde, e volto para a cama onde estão a Xana e a Teresa.» E é tudo para a página 85.
As descrições das festarolas em casa de amigos, como a Gina, são esmagadoras: «O Luís está em cima da mesa a `comer' a Mónica. O Jonas está à volta do cu da Paula. A Teresa, eu e a Xana já estamos os três embrulhados. Só me lembro que no fim de contas acabei por comer a Clara também, porque o Nuno Rocha caiu de maduro e a Xana e a Teresa resolveram `esfarrapá-la' completamente.»
Telefonemas entre o Nuno e os amigos, há muitos, mas o da página 106 supera tudo:
«-- Tudo bem. Apanha-me às duas e meia.»
«-- Okay. Ouve!»
«-- Sim?»
«- Enquanto tu ficas a dormir, vou aproveitar para seguir o teu conselho.»
«-- Qual?»
«- Vou cagar.»
«-- Tchau.»
Na página 118, Nuno está em casa da Xana a conversar com ela acerca da sua profissão de «gigolo». A cena continua na página 119, Nuno faz uma pergunta a Xana e, na página 120, a resposta de Xana já é feita na praia!
As críticas, todas elas negativas e esmagadoras, não parecem incomodar Tonelo. «`Bada' merda, quero lá saber disso, disseram que eu era uma cópia patética do Brett Easton Ellis, `tou-me a borrifar! Eu recebo 190 paus por cada livro vendido. Acha que por 200 escudos eu me vou preocupar se o livro vende ou não vende?' Tou-me a cagar! Completamente! Tive amigos que gostaram, a minha mãe é que não porque acha que o livro tem uma linguagem baixa e ordinária.»
A incursão de Nuno Tonelo no mundo das letras começou no liceu, sobretudo sempre que se sentia mal com o mundo. Mas foram os dois anos que passou na Marinha e a revolta que sentiu contra o rígido sistema militar que o levaram a escrever em grande quantidade. «Escrevia muito, à resma, mas não se aproveita grande coisa. É uma destilação de ódio completa.» Um dia, transportando um caixote de fruta, escorregou e deixou cair seis peças. «Apanha!», gritou-lhe o cabo. «Apanha tu», respondeu o grumete Tonelo. Resultado: um mês de cadeia por insubordinação e desobediência.
Depois de uma estada de dois anos em Londres, Nuno ainda foi DJ no Café Concerto -- «fechei o Café Concerto» -- até acabar no Casino do Estoril a trabalhar na iluminação de «007» e «Mozart». A carreira de luminotécnico encurtou por causa de umas calças de ganga. «Não podia entrar de calças de ganga e um chefe de mesa pôs-me cá fora.»
A carreira de «gigolo» começou muito tempo antes. A mãe de Nuno trabalhava numa empresa ligada ao Casino. Nuno acompanhou-a numa recepção e uma senhora pensou que ele fosse o «gigolo» da mãe dele. Acabou a trabalhar para essa senhora. «Tem o género de uma agência, que funciona de boca em boca.» Nuno afirma receber então 25 contos por cada serviço e nunca se ter arrependido. «Toda a gente se põe de joelhos, uns põem-se de uma maneira, outros de outra.»
Retirado da profissão -- «ninguém aguenta muito tempo» --, Nuno trabalha agora em montagem vídeo como «free lancer» e afirma estar a preparar uma obra sobre um assassino profissional. Porquê? «Porque é aquilo em que eu tenho medo de me vir a transformar. Não me repugna matar alguém por dinheiro, como não me repugna assaltar um banco, como não tenho nada contra o traficante de droga. É um homem de negócios. O consumidor é um desgraçado.»
PUBLICO, 16/11/1995