Saul ab initio - as it began:
O mestre Quim Barreiros
- COMENTÁRIO TÉCNICO -
Arte alguma é construida sobre um vácuo. No complexo processo de criação, quantas influências devcm ser consideradas primeiro até que surja uma singela ponta de originalidade! Se estivessemos a falar de Aristóteles, o maior génio da Antiguidade, não seria despropositado um comentário oportuno a Platão, que, partindo dos sapientes ensinamentos de Sócrates, estabeleceu muitas das bases do pensamento ocidental. Não é Saul certamente o maior génio dos tempos que correm? Como tal, é no mínimo justo realizar uma homenagem sentida, ponderada, mas essencialmente merecida ao também Mestre Quim Barreiros. Aqueles que porventura tenham tido a sorte de acompanhar com algum desenvolvimento a obra do Trovador Barreiros (como carinhosamente é apelidado dentro dos círculos intelectuais), lembrar-se-ão a este propósito, talvez imediatamente, daqueles seus célebres e apaixonados versos:
Deixa-me cheirar teu Bacalhau, Maria
Deixa-me cheirar teu Bacalhau!
Mariazinha, deixa-me ir à cozinha!
Oh! deixa-me ir à cozinha -
Cheirar teu bacalhau!
O famoso "Bacalhau". Aqui está ele - tendo se assim iniciado toda uma escola de pensamento, toda uma visão do munto, uma plenitude de interpretações do fenómeno ontológico, que viriam a atingir maturidade no seio da Poesia de Saul. Indagadores das grandes questões e sedentos da forma bela e sublime, achamos que este é precisamente o espaço ideal para, com brevidade tomarmos o gosto a uma famosa criação de Quim Barreiros, "A garagem da vizinha", transcrita na íntegra aqui (recomendamos fortemente a sua leitura ).
Esta é seguramente não só uma das criações mais espantosas de Quim Barreiros, mas também uma das composições da mais fina estirpe da poesia em língua portuguesa. Roçando por vezes um simplismo quase coloquial, a sua acutilância e profundidade não são de maneira nenhuma comprometidas. Só prova que os grandes temas podem ser abordados segundo moldes que, por detrás de um estrutura descomplexa, apresentam uma riqueza estrutural poderosíssima. Este poema apresenta-se como uma verdadeira alegoria - a fusão do "carro" com a "garagem" não é mais do que a busca do Homem da Realidade, que lhe é alcançavel apenas pela Linguagem, especialmente pela Arte Literária, que dentro de si esconde uma pluralidade de mundos, um sistema semiótico próprio, onde apenas os eleitos, como Quim Barreiros, se atrevem a embrenhar - e onde os curiosos, como nós, apenas pretendem possuir a vaga e vã noção das coisas.
A primeira estrofe, directa e concisa, coloca-nos a nós, leitores, rapidamente a par da relação dialéctica que servirá como ponto de equilíbrio da semântica deste poema: o sujeito e a "vizinha", por extensão o "carro" e a "garagem". Parece-me ser a fusão entre estes dois elementos o ponto primordial de análise no âmbito desta criação poética. Curiosamente, no poema atrás citado (Deixa-me cheirar teu bacalhau), regista-se uma dialéctica muito semelhante - entre o sujeito e o bacalhau do destinatário, a Mariazinha.
Surgem então perguntas legítimas e coerentes: quem ou o quê desempenha os papeis estabelecidos pelo poema? Qual o espaço semântico a ser percorrido entre o sujeito e o seu "carro", e a vizinha e a sua "garagem"? Um indício de que a fusão entre os elementos considerados se concretiza é claramente evidenciado na estrofe primordial desta composição:
Ponho o carro, tiro o carro
À hora que eu quiser!
Que garagem apertadinha,
Que doçura de mulher!
Tiro cedo, ponho à noite
E também de tardezinha.
Tô até trocando óleo
Na garagem da vizinha.
Uma dos guias possíveis de interpretação deste poema pode ser encontrado no pensamento de um filósofo moderno, fundamental na formação de Quim Barreiros, Wittgenstein. No seu Tractatus Logico-philosophicus, este filósofo afirma que "o sentido do mundo deve encontrar-se fora do mundo" - mais, "os limites da minha linguagem significam os limites do meu próprio mundo". A ponderação destas ideias leva-nos a estabelecer uma dialéctica entre a linguagem, como sendo a nossa cristalização do mundo, e o real, que podemos atingir apenas através da linguagem. Numa dimensão mais artística (a que eu prefiro chamar de "filosofia" artisticamente sublime), o cultivo da linguagem por meios retóricos é assim a mais séria das ponderações epistemológicas. De novo, apelo a outro existencialista, neste caso Heidegger, que afirmou: "A essência da arte é o Poema. A essência do Poema é a instauração da Verdade". Assim se verifica que através da Poesia é possível atingir uma aproximação da verdade, que, de tão brilhante, nos engana, tolos que somos na busca de certezas inalteráveis e de prazeres absolutos.
Esta dialéctica, que enuncio de novo, entre Linguagem (Poesia) e Mundo (Verdade) encontra um paralelo magnificamente trabalhado pela ligeira pena de artista de Quim Barreiros. O sujeito não é mais do que um Paladino da Arte, da Poesia e da Linguagem, que através do seu engenho (o seu "carro") persiste na perseverante busca da Verdade. Será então legitimo associar a "vizinha" à Verdade, enquanto abstracção cognitiva? Certamente, mas com algumas cautelas. É o próprio sujeito poético que nos dá a conhecer algumas condicionantes desta ideia. Sabemos que alguem abandonou a "vizinha"; mais, a sua "garagem" já foi usada. Sendo a vizinha uma clara personificação da Verdade, não será incoerente afirmar que a Garagem será um meio de aproximação àquela. Tudo me leva a crer que esse meio de aproximação é a Poesia - e fundamento a minha proposta no enunciado, já citado, de Heidegger: "A essência do Poema é a instauração da Verdade".
A consequência mais directa desta associação de ideias é a interpretação deste poema como um elogio da Poesia, meio (ou "garagem") já utilizado por muitos, não inédito. A Poesia, de facto, perdeu há muito a sua virgindade; dentro de si encontra-se uma pluralidade de mundos, um sistema semiótico próprio, onde apenas os eleitos se atrevem a embrenhar - e onde os curiosos, como nós, apenas pretendem possuir a vaga e vã noção das coisas. Aplicando estes pressuposto às personagens da nossa alegoria (título que assenta perfeitamente nesta composição, pelas razões até aqui expostas), podemos acrescentar que o objectivo do sujeito é, então, fundir-se com a Verdade (isto é, procurar conhecê-la) - penetrando a "garagem" com o seu "carro", que, recordamos, é o seu engenho, a sua capacidade de criação poética, que, sob a "chuva" das dificuldades da existência, ameçava "enferrujar". Sobre o "carro" afirma ainda o sujeito que, por muito que tente atingir o sublime, peca irresistivelmente pela sua dimensão física, logo mortal.
Só que meu possante tem
Uma linda carretinha
Que eu uso pra vender coco
Na minha cidadezinha.
Mas a garagem é pequena
E o que é que eu faço agora?
O meu carro fica dentro
Os cocos ficam de fora.
O sujeito, ansioso por atingir a abstracção, esquece-se da sua dimensão humana - aqui representada numa metáfora engenhosa pelos "cocos", através dos quais estabelece a sua vida comum, terrena (compreensível pela alusão à venda na "cidadezinha"), longe da essência real das coisas. Assim, não é de admirar que, no momento de contacto com a "vizinha" ( a Verdade), através da "garagem" (a Poesia, ou Arte Poética), os Cocos (a dimensão física do Homem) fiquem "de fora". O caminho para o Real é, talvez paradoxalmente, abstacto, não concreto.
Lidas as linhas gerais desta sensacional criação, resta fazer uma alusão final à forma enigmática com que o poeta termina a sua elocução:
A bondade da vizinha
É coisa de outro mundo!
Quando não uso a da frente
Uso a garagem do fundo!
Qual será o meio alternativo de se atingir a Verdade? Qual é o caminho obscuro que devemos percorrer para alcançar a Essência? Esta "garagem do fundo", propositamente deixada para o fim do poema, mostra-nos que a solução de um problema é a origem de vários outras interrogações. A garagem do fundo não é mais do que a pura interrogação da Verdade pela não afirmação - caso se compreenda a Poesia (enquanto concretização linguística) como afirmação, construção de significantes. Esta "garagem do fundo" é certamente um meio doloroso de se atingir a "vizinha" - pela descrença e desconfiança que pode gerar, caso se, na ânsia de se desmentir, se esqueça de se afirmar.
Concluída esta breve análise geral, gostaria de, por escolha pessoal, citar um génio nesta elogiada ars poetica. Na sua "Advertência" , nas "Folhas Caídas", Almeida Garrett resume muito bem aquilo que Quim Barreiros expõe de forma alegórica na sua composição "Garagem da Vizinha". Uma homenagem a todos os poetas, mas que, neste caso, quero, à laia de conclusão, aplicar muito especialmente a Quim Barreiros.
"O poeta é louco, porque aspira sempre ao impossível (...)
Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele.
Deixai-o passar, porque ele vai aonde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria.
E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, será punida com a morte.
Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta"
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Luigi Pirex, 10 de Junho de 2003
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