AS DIFERENÇAS entre a chamada música «pimba» e «não pimba» são ligeiras, quase circunstanciais? Ou são diferenças de forma e conteúdo que reflectem o conflito entre tendências opostas do génio lusitano, a falha abissal entre duas visões de um mesmo país, formas irremediavelmente diversas de «estar na vida e na música»?
À primeira vista poder-se-ia dizer que a primeira tem a principal base de apoio no Portugal rural e no interior, que reconhece os seus artistas como heróis da classe operária e trabalhadora, homens e mulheres que conseguiram segurar o destino nas mãos e se ergueram a pulso bem acima da média comum aos outros mortais - exemplos a seguir. Embora alguns êxitos sejam simples versões portuguesas de composições adquiridas a «publishers» alemães e italianos, as canções são frequentemente influenciadas pelos ritmos tradicionais do vira, do malhão e do corridinho e acentuam o sentido de etnicidade, mas também a diferenciação sexual. Há canções especificamente destinadas a homens, há canções para mulheres, e há canções de amor, que, como escreveu J.G. Peatman, poderiam ser divididas em três grandes grupos: as que contam como somos felizes quando estamos apaixonados (como em «Escrito no Céu», de Ágata); as que contam como é frustrante estar apaixonado (como em «Maldito Amor», também de Ágata); e as que contam curiosidades maliciosas com nítidas conotações sexuais.
Em geral fornecem ao seu público uma linguagem convencional para o namoro e a atracção sexual e ajudam a forjar uma sexualidade. Apesar da concorrência brasileira do «Tchan» e do «Bicho», Verão após Verão o acordeonista minhoto Quim Barreiros continua a ser o mestre incontestado do género, somando êxitos como «Chupa Teresa», «Deixa Só Botar a Cabeça», «Nunca Gastes Tudo» ou «Mestre da Culinária». O aparecimento, no ano passado, de uma criança de nove anos (o pequeno Saul) interpretando «O Bacalhau Quer Alho» é a prova de que a indústria está atenta.
A sério ou a brincar, as canções pimba também falam de estados de alma e de sensibilidades emocionais, ajudando a redefinir ou recentrar a condição social dos seus ouvintes, oferecendo-se como referente das regras e comportamentos sociais: neste sentido, observe-se que parte significativa da produção toma os emigrantes como tema, sob as mais diversas formas. Pode ser o drama do acidente rodoviário em terras de Espanha, como numa canção de Graciano Saga; a garantia de que «A Portuguesa é a Mais Linda», como canta Jorge Ferreira; ou a simples celebração de prazeres tão privados quanto o nosso «Verde Vinho», de Paulo Alexandre. O brilho fica com os intérpretes, os autores das canções remetem-se quase sempre para um bastidor discreto (como Ricardo Lundum) mas também transmitem a ideia de que a vida é só uma, mas difícil - embora valha a pena lutar por ela, porque todas as oportunidades devem ser bem aproveitadas - e não se alongam sobre temas que sejam perversos, controversos, desconfortáveis ou irreais.
Comparada com elas, a restante música popular portuguesa ou é antiga e ultrapassada, como a dos nossos avós, ou é litoral, cosmopolita e intelectualizada, pejada de referências estrangeiras e de diálogos com tudo o que vem de fora, que podem ser mais bem compreendidos no café da cidade do que no café da aldeia. É uma música que, não se contentando em ser portuguesa, quer ser no mínimo europeia e leva esse exagero a extremos tais que muitos dos seus artistas preferem cantar em inglês. É uma música onde ninguém se contenta com a glória de ser intérprete - todos, quase sem excepção, persistem em ser autores e compositores, não para venderem o seu trabalho em cassetes de 700 escudos, mas em CD de quatro contos.
A primeira é a música do país que perpetua e ritualmente se reencontra, as canções que imaginam conseguir mostrar como nós somos. A segunda é a música do país que perpetua e ciclicamente se reinventa, as canções que imaginam conseguir mostrar que também somos capazes. As diferenças são entre a música popular como reconciliação ou revolução. Evidentemente, tudo isto é relativo: de um certo ponto de vista também poderiam encontrar-se semelhanças entre as duas correntes.
Por exemplo, seja em palco, na rádio, no «playback» ou no teledisco, qualquer canção se assemelha mais a uma pequena peça de teatro do que a um poema acompanhado de música. E é assim que as percebemos, como episódicos retratos de uma realidade que pertence a todos e a ninguém, transmitidos com maior ou menor sentimento pela voz e os gestos de um cantor/actor. Outras semelhanças há que são forçadas, desde os anos 30, pelo ponto de vista institucional, o que domina os gabinetes de programação: desse ponto de vista, tudo isto se resume a «música lie tem uma cor indistinta. Por isso, temos programas de variedades mas não temos bons programas sobre música «pimba», ou sobre música «não pimba» E, de um certo ponto de vista, tanto faz.
Revista / Expresso, 22/08/1998 (artigo «Génio Lusitano»)