Os meus pais arruinaram-me
Habituados aos palcos do circo, os pais de Saúl derreteram mais de meio milhão de contos em dez anos. Ficou, como ele canta, “sem dinheiro nem cuecas”. Mesmo que com o pé atrás e vergonha dos que o arruinaram, o pequeno do acordeão não desiste. Continua a actuar e vive com a namorada na Figueira da Foz.
Correio Êxito – Por que é que, nos últimos anos, o Saúl tem andado desaparecido?
Saúl – O Saúl só tem andado desaparecido na Comunicação Social, não vai à televisão nem aparece nos jornais. Nunca parou de fazer espectáculos e continua a correr mundo. Muitas vezes quando chego aos espectáculos as pessoas ficam surpreendidas porque pensavam que o Saúl já não existia.
P– Como é que explica isso?
– Não consigo explicar.
P– Houve algum momento de ruptura ou mudança que lhe fez perder o protagonismo?
– Durante muitos anos não tomei decisões nem geri a minha carreira. Também disseram que tinha morrido num acidente de carro.
P– Qual foi a decisão mais difícil que tomou na vida?
– Há um ano ocorreram umas coisas que eu não estava à espera.
P– Que coisas?
– Problemas familiares. Trabalhava com os meus pais, houve umas complicações e tive que deixar de trabalhar com eles. Tomei decisões que devia ter tomado logo no início da minha carreira.
P– Que decisões?
– Decisões que tomavam por mim.
P– Parece amadurecido à força.
– Sinto-me um bocado maduro porque já estou dentro do assunto. Já sou produtor e empresário de espectáculos. Trato da minha carreira em primeiro lugar.
P– Por que é que os seus pais deixaram de ser seus empresários?
– Agora trabalho com o meu tio, mais conhecido por Nelly Noronha. Estamos em conjunto para levarmos isto para a frente.
P– O que é que aconteceu entre si e os seus pais?
– Não posso dizer o que foi. Como é que eu hei-de explicar isto? Não deviam ter feito o que fizeram para arruinar a minha carreira. Agora estou a tentar levantá-la.
P– Mantém relações com eles?
– Sim. São meus pais, não vou deixar de falar com eles.
P– Por que é que vendeu a sua mansão?
– Foram eles que quiseram. Não pude fazer nada. Se fosse hoje seria diferente.
P– A propriedade, com campo de futebol e piscina, era sua ou deles?
– Estava em nome deles. Os problemas que existiram também foram derivados disso. Agora, sozinho, estou a tentar levantar-me para voltar a ter o património que tinha.
P– Quem ficou com o dinheiro da venda?
– Foram os meus pais.
P– O Saúl vive numa casa de uma instituição de caridade?
– Isso é mentira.
P– O que é que fez ao que ganhou durante dez anos?
– Não posso dizer que fiz muito porque nunca tive acesso directo ao meu dinheiro.
P– E os seus pais fizeram alguma coisa?
– Muita coisa.
P– O quê?
– Jogos, carros, dinheiro mal gasto. Dinheiro mesmo muito mal gasto.
P– Hoje estão bem na vida?
– Não estão muito bem.
P– Porque não souberam gerir o dinheiro?
– Sobretudo, não souberam gerir o meu dinheiro.
P– Eles deveriam dar-lhe o que têm, o que você ganhou?
– Não lhes peço nada porque não têm nada.
P– Perderam tudo o que tinham?
– Ficou quase tudo nos casinos.
P– Não cresceu na carreira porque gastaram tudo e não investiram nada na sua carreira?
– Eles não quiseram investir e a minha carreira começou a diminuir.
P– A sua família depende, ou dependeu, economicamente de si?
– O meu pai também me ajudava. Conduzia o camião, tal como o meu tio. Não vou dizer que sim nem que não. Ela por ela.
P– É verdade que recentemente não pagou as prestações de um automóvel?
– Não tenho carro e só agora é que estou a tirar a carta de condução.
P– Então foi o seu pai?
– Deve ter sido.
P– Há um ano compôs o single ‘Sem Dinheiro e Sem Cuecas’. Deixaram-no sem dinheiro. Deixaram-no também sem cuecas?
– Sem cuecas não. Isso não. Só me deixaram sem dinheiro.
P– Os seus pais tornaram público que lhe depositavam o dinheiro que ganhava numa conta a que teria acesso aos 18 anos.
– Não havia conta nenhuma. Foi mais uma mentira da minha mãe.
P– Não parece muito zangado...
– Não estou zangado mas também não lhes dou as largas que tinham antigamente.
P– Já não confia neles?
– Agora não. Posso dizer que não tenho confiança em ninguém.
P– E perdoou-lhes?
– Não. Perdoar não perdoei.
P– O Saúl também é de excessos?
– Já fui mais.
P– De que tipo?
– Excessos materiais, dinheiro gasto em computadores.
P– O que é que sentia quando via os seus pais a esbanjarem?
– Era muito pequeno para perceber isso. Não deve ser fácil para alguém que não tem nada e que de repente passa a ter tudo. Não os censuro por esse comportamento durante um ou dois anos. Mas passado esse tempo deviam pensar que tinham filhos, que tinham património e que era preciso saber geri-lo.
P– Como é que é viver com quatro irmãos, todos rapazes?
– Está a ver o que são homens à porrada? Nós éramos dia sim dia sim, todos os dias à pancada.
P– Porque é que alguns dos seus irmãos estão a viver com a avó?
– Porque os meus pais foram para Inglaterra.
P– Lembra-se de, com quatro anos, ser um grande contador de anedotas?
– Nos cafés, aquilo é que era ‘nice’. A minha mãe não sabia de mim; fugia para ir contar anedotas ao pessoal que achava muita piada.
P– Considera-se inteligente?
– Não muito. Se quisesse podia ser mais. Estou na média.
P– O que é que poderia fazer para ser mais?
– Em primeiro lugar, pensar duas vezes nas coisas e não entrar logo de cabeça. Pensar naquilo que vou fazer e não abrir o coração para toda a gente, como faço, nem ser tão dado.
P– Qual foi a maior asneira que fez na sua vida?
– Ter deixado os meus pais tomarem conta da minha carreira.
P– Foram eles que perceberam que tinha potencial artístico?
– Foram uns colegas do meu pai. Estávamos no circo, gostava de imitar o Quim Barreiros, mandaram-me ir ao ‘Big Show SIC’, e lá fui.
P– Nunca soube tocar acordeão?
– Aquilo era a brincar. Era só fechar e abrir esse instrumento.
P– No último ano foi aprender...
– Fui mas não sei tocar muito bem. Não faço melodias nem nada disso. Faço o que necessito para dar um espectáculo. E já é muito.
P– Como é o seu dia-a-dia?
– Divertido como sou e sempre fui. Estou a tirar um curso profissional de técnico de informática. Namoro.
P– Há quanto tempo namora?
– Há um ano e três meses. Faço o normal para um jovem de 19 anos.
P– Sai à noite, toma uns copos...
– Não gosto de beber. Só Coca-Cola, e já é bom.
P– Por que é que decidiu viver com a namorada e não casar?
– Cada coisa a seu tempo. Não nos podemos precipitar nas escolhas. Temos que ter calma.
P– Qual é a sua opinião sobre o casamento?
– Muitos dizem que serve para se enforcar. Tenho que experimentar uma vez para ver como é.
P– Por causa da música não brincou?
– Não vivi a minha infância como as outras crianças.
P– Tem saudades desse tempo?
– Um bocadinho. Tinha muito trabalho mas não me arrependo de nada. Gosto muito do que faço e do que fiz. Só gostava de voltar atrás para recomeçar tudo.
P– O que é que faria diferente?
– Tudo. Por exemplo, começava por ser eu a mandar logo desde o início.
P– Uma criança com seis anos não gere a sua própria carreira.
– Gere, com a ajuda de outros.
P– Alguma vez se sentiu vítima do trabalho infantil?
– Não. Os meus pais nunca me obrigaram a cantar.
P– Parece triste ao recordar o passado.
– Na altura eu era muito conhecido. Hoje, muita gente pensa que eu já não canto, e está enganada.
P– Quais são os momentos que mais o marcaram na vida?
– O início da minha carreira foi muito bonito. Quando se começa é sempre mais bonito do que já no meio.
P– Como é que se vê a si mesmo e àquela figura catita, de sorriso fácil e cara de puto reguila?
– Se me visse hoje pensava que aquele puto era parvo. Estava-me sempre a rir não sei de quê. Só se fosse por ter comichão nalgum sítio. Era muito alegre, maluco...
P– Maluco como?
– Tenho uma pancada qualquer. Não sei onde, mas um dia ainda hei-de descobrir.
P– Como é que isso se revela?
– Às vezes faço cada coisa!...Revela-se nas brincadeiras, na forma de dançar, nas bocas que mando.
P– Quando recebeu a tripla platina, por vendas superiores a 120 mil unidades, o que pensou?
– Pensei que era bom naquilo que fazia porque senão não tinha vendido tanto. Foi uma grande emoção porque nunca pensei que pudesse acontecer. Na altura em que gravei ‘O Bacalhau Quer Alho’, tinha sete ou oito anos, achei que não ia dar nada. Saiu e foi um estoiro, uma bomba. Fiquei muito admirado.
P– Quim Barreiros representa o quê para si?
– Em primeiro lugar é o meu ídolo de sempre. Aquele que comecei por imitar. É também um grande amigo. Aproveito a oportunidade para tirar uma dúvida às pessoas: o Quim Barreiros não é meu pai nem faz parte da minha família. Como ele é o meu padrinho artístico as pessoas confundiram tudo.
P– Conhece figuras ilustres que gostam da sua música?
– Conheço um, o falecido JFK Júnior que viu um concerto meu num restaurante em Providence, nos Estados Unidos, e disse que gostou muito de me ouvir cantar.
P– O que é que a música representa na sua vida?
– Animação, descontracção. Já que o nosso país está tão mau pelo menos alegro as pessoas e divirto-me.
P- Porque é que “o nosso país está tão mau”?
– Isso aí é complicado. Acho que é por causa dos ministros.
P– Até onde chegou na escola?
– Vou agora tirar a equivalência ao 12º ano. Decidi fazer um curso profissional.
P– Técnico de Gestão Informática. Usufruiu disso?
– Muito. Fiz um estágio, trabalhei, sei mexer melhor em computadores. Se precisarem de um técnico estou cá eu porque sou bom nisso.
P– Se o convidassem para trabalhar na área aceitava?
– Ainda não me sinto preparado. Se um dia a música deixar de dar, aí sim, tenho essa vertente.
P– O que é que mudou na sua vida nos últimos anos?
– A minha voz, passei eu a mandar na minha carreira, gravei novos trabalhos. A minha vida mudou completamente.
P– Para melhor?
– Para melhor.
P– Considera-se um ícone da música popular brejeira?
– Penso que sim. Porque, não sei como, toda a gente conhece ‘O Bacalhau Quer Alho’ e o Saúl.
P– É um mito?
– Sim, já lá vão 15 anos. Até hoje, graças a Deus, ninguém se esqueceu do Saúl. Agradeço a todos os que gostam de mim e das minhas músicas.
P– Acha-se um bom artista?
– Não devo responder a isso. Gosto de me ouvir, acho que tenho uma boa voz, às vezes até me consigo imitar a mim mesmo.
P– Inclui-se no rol de cantores pimba!?
– Há dois anos, eu e o Zé Malhoa fomos considerados os reis da música pimba. É bom. É sinal de que ainda sou conhecido.
P– Sente-se um pequeno rei?
– Só do meu próprio nariz.
P– O que é que responde a quem acha a sua música pirosa?
– Se acham que a música portuguesa é pirosa então traduzam a inglesa e vejam o resultado.
P– A música pimba é a música dos excluídos?
– Não. Ainda há pouco tempo o mercado era da música pimba e não das outras músicas.
P– A ‘inteligentzia’ portuguesa ignora-a?
– Acho que sim. São eles que estragam o nosso mercado.
P– De que forma?
– Tipo ‘Morangos com Açúcar’, rapazes jovens, 4 Taste e essas coisas assim, por que é que não cantam em português?
P– Qual é o seu cachet?
– Nunca falo de cachet. Mas sou mais barato do que os outros.
P– Por que é que não revela quanto cobra?
– Quem quer espectáculos liga e nós dizemos quanto cobramos.
P– Os euros amealhados alguma vez lhe subiram à cabeça?
– Não. Quem me conhece sabe que isso é verdade.
P– Ainda se dedica ao bilhar, aos póneis, aos cães de raça, aos jogos de computador?
– Agora estou a aprender a jogar golfe e gosto de jogar futebol.
P– Chegou a sonhar ser guarda-redes da Naval 1.º de Maio.
– Quando era pequeno sonhava que viria a ser guarda-redes da Selecção Nacional.
P– Ainda é fanático pelo Benfica?
– Sempre.
P– Continua a ser bem recebido nos locais onde actua?
– Não dizendo que os outros são mais ou menos bem recebidos, noto que as pessoas têm carinho por mim.
P– E as editoras têm alguma responsabilidade no esquecimento a que foi votado?
– Como é muito complicado vender CD não apostam tanto nos artistas.
P– Desiludido, deixou a Vidisco e entrou na Espacial, onde também não deu certo. Porquê?
– Houve pessoas lá dentro que só queriam agarrar no Saúl para o mandar cada vez mais para baixo.
P– Vive só dos espectáculos?
– Vivo.
P– Embora tenha editado ‘Hoje É Dia de Jesus’ para o Natal, ninguém passou a música nem foi à televisão. Sabe porquê?
– Lançámos o CD antes do Natal para irmos ao ‘Natal dos Hospitais’ e isso tudo, mas nunca me chamaram para nada.
P– A sua música estará estafada?
– Pelo contrário. A minha música ainda vai ter muita vida.
P– Sente-se revoltado ou triste por o terem esquecido?
– Mais triste porque na altura em que precisaram do Saúl, era Saúl para aqui e Saúl para ali. Agora que há outros deixaram o Saúl de parte. Deviam lembrar-se do Saúl, não digo mais, mas pelo menos uma vez por mês.
P– Quais são os seus maiores desejos?
– Continuar a animar Portugal, gravar muitos CD, ter saúde e uma vida estável.
'O BOATO DA MINHA MORTE CORREU ATÉ À AUSTRÁLIA'
P– Por que é que, em 1998, fez uma pausa na sua carreira?
– Foi por causa da escola. Estive parado um ano e queria recuperar.
P– É então que começa a correr o boato de que o Saúl tinha morrido num acidente...
– Já ouvi seis histórias a esse respeito. Uma, foi que no Hospital da Gala, Figueira da Foz, onde nasci, deu entrada um rapaz já morto com o mesmo nome que eu e a mãe dele com o mesmo nome da minha. Também pode ter sido por causa do acidente do meu tio. Pensavam que eu ia com ele e que tinha morrido. Esse boato correu até à Austrália, de onde me ligaram a perguntar se estava vivo. É aí que eu não entendo. A Comunicação Social, que não queria saber do Saúl, pediu, em peso, para assistir e filmar o funeral. Isso não me entra na cabeça. Para o bem, os ‘mass media’ nunca estão lá, mas para o mal fazem tudo para estar.
P– Esse boato ainda circula pelas localidades onde actua?
– Circula e muito. Tenho perdido muitos espectáculos porque pensam que já estou morto. Às vezes até faço uma brincadeira: “Cheguei no autocarro das cinco, o gajo lá de cima deixou-me vir cá abaixo”.
P– Sente que, de alguma forma, por causa da fortuna que os seus pais perderam e dessa notícia do acidente de viação, o Saúl está a começar do zero?
– É isso mesmo.
'DIZIAM QUE EU TINHA TRISSOMIA 21'
P– É saudável?
– Graças a Deus.
P– Um tio seu tem a doença Trissomia 21. Isso preocupa-o?
– Quando eu era pequeno os médicos diziam que eu também tinha essa doença. Diagnosticaram-me, inclusivamente, uma deficiência, mas nunca souberam qual.
P– Ainda tem o sonho de fazer uma licenciatura e de ser piloto de aviões?
– Não. Já me deixei disso. Porque os meus dentes não são muito bons e um piloto tem que ter os dentes direitos. A altura também conta e sou muito mau a matemática. Safo-me sempre mas por debaixo da mesa.
P– Costuma ser assediado?
– Quando tinha 16 anos, em Viseu, dei um autógrafo um bocado quente. A rapariga chegou perto de mim, toda doida, deu-me um grande beijo na boca e pediu-me para lhe autografar o peito.
P– Qual foi a última vez que chorou?
– Foi há um ano, por causa daquilo que os meus pais me fizeram. Senti-me posto de parte por eles.
P– E o momento mais duro?
– Um foi o acidente do meu tio Nelly, que esteve em coma. O outro foi quando descobri que afinal não havia conta nenhuma em meu nome. O meu pai estoirou tudo o que era meu, fez mais umas maroscas e desapareceu sem dizer nada a ninguém.
PERFIL
Saúl Ricardo nasceu na Figueira da Foz a 18 de Agosto de 1987. Em 1994 notabilizou-se com imitações a Quim Barreiros mas foi com ‘O Bacalhau Quer Alho’, de 96, que fez sucesso. No ano seguinte, ‘Os Pitos’ volta a atingir a platina. Depois tem um período conturbado, o seu nome cai no esquecimento. Em 2000 lança ‘Gosto de Ti à Brava’, registo mais pop a que o público não adere. Em 2002 opta por revisitar o estilo brejeiro e as letras maliciosas em ‘Espeto Um Prego’, que atinge o ouro. Dá indícios de recuperar o fôlego mas em 2003 regista ‘Não Sou Mau Estudante’, um fracasso de vendas, tal como o seguinte ‘As Bolas de Snooker’. O ano passado lança ‘Saúl’, mas ninguém parece ter notado.
José Manuel Simões / Correio Êxito, 06/01/2007
Criança ainda na muda dos dentes, Saúl Ricardo é já uma
demonstração viva dos eternos valores da raça. Outros povos terão
Shirley Temple, Pierino Gamba, outros mesmo terão Mozart (...). Mas nós,
com Saúl Ricardo, estamos na vanguarda infantil. Produto do Big Show
SIC (...) a glória universal do pequeno génio consiste na imitação de
Quim Barreiros. Celebrizou-se particularmente com a interpretação de
‘Bacalhau quer alho’".
Mário Castrim, Tal e Qual, 03/01/1997