Cauteloso e observador. Estes são os adjectivos que se podem aplicar a Norberto Fernandes nos primeiros minutos de conversa.
Depois, é preciso fazer evoluir o dialogo com cautela, para baixar as defesas dos seus intensos olhos azuis e do tom fleumático com que responde às minhas perguntas. "Não gosto de sapatos novos". Esta inusitada resposta vem um pouca seca e refere-se ao edifício da Marconi, gentilmente alcunhado pelos lisboetas de "bolo de noiva".
Agucei as orelhas, convencida de ter detectado uma critica, Mas em vão, o presidente do Conselho de Administração da Marconi sorri da minha agitação ingénua e esclarece: "Não aprecio muito edifícios novos e acho que não necessitávamos de estar no centro de Lisboa, Mas tirando estas pequenas reservas, acho que é muito funcional".
Norberto Fernandes assumiu há dois anos a presidência da Marconi, depois de uma efémera passagem como Secretário de Estado dos Transportes e Comunicações do 13° Governo Constitucional no gabinete de Henrique Constantino, que faleceu escassos meses depois de ter sido nomeado.
Mas conhece bem a empresa, tem quase dez anos de dedicação à causa das Telecomunicações. Devagar percorremos a sala do Conselho de Administração, analisando os retratos dos presidentes anteriores ao anfitrião. Imperscrutável, Norberto Fernandes faz comentários de circunstância sobre os seus antecessores, comentando o estilo dos retratistas. Anoto: o nosso homem gosta de pintura.
O tom de voz só se altera quando nos perfilamos em frente de Henrique Constantino, o homem que levou o meu entrevistado para a política e para os corredores do poder. "Era difícil resistir-lhe, segui-o sempre que ele precisou de mim, Era um grande amigo". Na imponente sala da presidência da Marconi, vibra uma nota de calor e saudade. Imperceptível, mas presente, Noto que não existe nenhum retrato do Presidente em exercício, a imagem deste quarentão grisalho, nascido em 1950 na Cidade dos Arcebispos. Informa-me que só se tem direito a retrato depois de ter abandonado a presidência, uma manifestação de decoro e modéstia, para não se perderem as reuniões do CA, contemplando a sua própria imagem, Uma prática de grande bom senso, quando verifico que Miguel Horta e Costa lá passou pela Presidência da Marconi.
A vaidade não é um dos traços mais evidentes do actual líder desta empresa, que recentemente foi nomeado administrador da Portugal Telecom. Ou então é bem dissimulada. Faz a síntese do seu percurso profissional de forma comedida, pesando as palavras e os feitos. Sem ceder nunca ao auto-elogio.
E, contudo, o caminho profissional é assinalável. Lá muito para trás fica a infância em Braga, a licenciatura em Engenharia Electrotécnica (Electrónica e Telecomunicações) pelo Instituto Superior Técnico Tudo certo, como mandam as regras.
Inicia a carreira profissional nos CTT Correios e Telecomunicações, como engenheiro, Este início comedido foi pulverizado seis anos depois, Aos 28 anos Norberto Fernandes é catapultado para o topo, como Director-Geral dos Correios do Norte. Por esta altura, ajuda ao parto de um projecto que veio revolucionar a distribuição do correio nacional: a implantação do código postal, O sucesso da operação deve ter rendido os seus dividendos. "Meio caminho andado" na carreira do líder da Marconi: aos trinta anos já é Director-Adjunto da Direcção Geral de Telecomunicações dos CTT. E podia ter sido assim até à presidência de qualquer das empresas ligadas às Telecomunicações. Tranquilamente, sem sobressaltos.
Mas o meu entrevistado, embora pareça contido e programado para uma existência sem exaltações, parece não apreciar a previsibilidade. E, contra todas as previsões, rompe o percurso ligado a esta área:
"Fui trabalhar para a marinha mercante. O sector estava debilitado, a marinha mercante portuguesa moribunda, mas eu nem pensei duas vezes. Fui para a administração da Portline, onde passei anos muito bons. É uma actividade muito estimulante e exigente. E, ainda por cima, tem o mar associado. Aqui para nós, eu tenho alma de marinheiro". Estava finalmente quebrado o gelo. A partir daqui, o Presidente da Marconi solta-se e a conversa deixa o registo da entrevista formal. "Tenho uma enorme paixão pelo mar." Norberto Fernandes não é um marinheiro de água doce, possui embarcação e, pelo que deixa escapar, não deixa ninguém pegar no leme: "Tenho uma propriedade em Tróia e um dos momentos mais estimulantes do fim-de-semana é ir até Alcácer de barco, com a brisa na cara, almoçar ou meter o totoloto".
Com os olhos no mar e a carreira nos barcos, o presidente da Marconi parecia ter feito uma opção. Acumulou participações em empresas da marinha mercante, sempre como administrador ou presidente. Os olhos animam-se quando evoca estas recordações e já se permite sorrir:
"Nos finais de 80, resolvi dar outra reviravolta. E, assim, aceitei a direcção de frente da internacionalização da Marconi em Bruxelas Foi um posto importantíssimo, porque me permitia continuar no mundo empresarial internacional Foi um momento de aprendizagem".
Bruxelas encantou-o. Habituou-se à ironia flamenga, viciou-se na cerveja belga. "Ali fiquei no meu papel de observador de factos contemporâneos". Lança a provocação a brincar revelando um sentido de humor que se adivinha agudo e certeiro.
Regressa a Portugal e a progressão para a cadeira da presidência da Marconi é inexorável. Mais seis anos e de director sobe tranquilamente a administrador sendo finalmente eleito Presidente. E pouco tempo depois é nomeado para o Conselho de administração da PT.
A forma como lidera a empresa é pragmática e dialogante. Orgulha-se de não fechar a porta a nenhum funcionário que queira falar com ele e, sempre que pode, imprime o seu cunho nas relações com os subordinados. Deixa-me perplexa quando confessa que é conhecido dentro da empresa por ser travesso e imprevisível. Não é bem o que eu estava à espera do Presidente de uma das maiores empresas de telecomunicações do País. Diverte-se com o meu espanto:
"Toda a gente dentro da empresa sabe que eu adoro pregar partidas. Ainda hoje preguei uma".
Olho para todos os lados, indagando se teria sido eu o alvo de tanto esforço. "Não é esforço nenhum. Todos os dias tento desmanchar a seriedade das coisas. Que sentido tem a vida se não brincarmos um pouco?"
Confessa-me então o seu gosto pela festa, pela boa-disposição, pela subversão. "Construir uma festa é ainda melhor que vivê-la. É desfrutar, por antecipação, o prazer que vamos proporcionar aos nossos amigos".
Surpreendente! As festas do senhor Presidente são operações de grande fôlego, prática que mantém desde a juventude:
"Pertenço a uma família grande, que se reunia todos os verões, para brincar e celebrar. Atacávamos sempre em bando."
Dentro da Marconi, toda a gente sabe da disponibilidade do Presidente para subverter.
"Atenção, não faça juízos errados. A cultura desta empresa é de comunicação e de proximidade. Não se pode confundir a nossa filosofia positiva com falta de disciplina. Mas gosto de baralhar as regras, odeio os paradigmas de automatismo, que nos fazem repetir todos os dias as mesmas tarefas".
Começo a compreender que o meu convidado é um poço de surpresas. As telecomunicações têm o seu fascínio, mas não lhe provocam discursos apaixonados. A palavra que lhe faz acender a alma é inesperada e parece quase deslocada nos salões bem-comportados da presidência da Marconi:
"A música tem um efeito poderoso em mim, Adoro música coral, Cheguei a considerar a hipótese de ser músico profissional. Depois, o pragmatismo impôs-se. Mas fiz estudos musicais sérios, estive no Centro de Estudos Gregorianos, fiz parte de um agrupamento de musica coral liderado pelo Francisco d'Orey, percorri o Pais a cantar em tournées divertidíssimas".
As recordações emergem sem dificuldade, os episódios saltam do passado:
"Lembro-me de que muitas vezes, na Juventude Musical, à tarde, púnhamo-nos a ensaiar. Mas, como não tínhamos a sonoridade desejada, arrancávamos para os Jerónimos e cantávamos para quem estivesse. Às vezes, era um velório, outras um casamento. Era fantástico. Uma tarde de sábado, deu-nos para cantar numa escadinha lateral do convento. Quando nos calámos tínhamos à nossa frente um grupo de turistas entusiasmados, que resolveram agradecer atirando-nos moedas. Foi dos poucos dividendos económicos que a música me rendeu. Mas o prazer que provoca!..."
A voz é o seu instrumento. Permite-se uma única vaidade, classificando-a de bonita e afinada, mas logo com timidez confessa que não tem aptidões especiais para qualquer outro artefacto musical. Mas a guitarra é uma presença constante no seu escritório doméstico e, segundo me conta, não se passa um dia que não dedilhe qualquer coisa, só para limpar a alma. No gabinete da Marconi ouve-se Haendel em surdina, quase aposto que assobia no elevador e canta na casa de banho, mas conseguiu surpreender-me de novo quando me revela o conteúdo da sua mais prezada colecção musical:
"Música pimba. Sou um fanático apreciador de música pimba. Adoro fazer provocações sobre musica pimba e divirto-me a teorizar sobre o fenómeno. Compro tudo, tenho autógrafos dos artistas. Faço sessões críticas com os meus amigos".
Amigos, parentes e colaboradores sabem desta fixação e todos se esforçam por contemplar o Presidente com os últimos sucessos da Ágata e não deixar escapar nenhum dos registos da Ruth Marlene e da Romana.
"O que mais me interessa são as letras. É extraordinário, a verdade do País está ali, em coisas singelas como o "Pisca-Pisca". Estão ali pérolas de senso comum".
De propósito, esquiva-se de tecer comentários sobre telecomunicações, um tema que, não o deixando indiferente, não parece estar nos seus afectos. E quando, para rematar, lhe pergunto, se lhe interessava mais conhecer Aristóteles Onássis ou Bill Gates, responde-me com diplomacia:
"Essa pergunta é difícil. Os armadores gregos são heróis para quem gosta do mar. O Bill Gates também é um gigante... Mas, se não se importa, quem interessaria mais nesse pacote era a Maria Callas".
Júlia Pinheiro / Linhas Cruzadas nº 12