O José Crispim foi às Noites Marcianas, acompanhado da sua oitava mulher, contabilidade de que se orgulha, uma vez que, entre casamentos e uniões de facto, a média nacional talvez deva andar entre dois a três "per capita" numa vida (enfim, isto é a olho). Foi no início da madrugada de ontem, obviamente cumprindo na íntegra a lei da televisão.
Os dois, o Crispim e a mulher, formam o conjunto Ele e Ela, um sucesso de vendas nas barracas das feiras daquilo a que chamam o "Portugal profundo". Ela, a quem ele define como o verdadeiro talento do grupo, tem um olhar sereno. Ele fala a cem à hora. Têm dois filhos, que estavam na plateia, o mais novo ainda não é adolescente.
Carlos Cruz estava satisfeito por ter o Crispim à mão, que ainda por cima o considera (a Carlos Cruz) uma espécie de anjo na terra, continuamente traído por gente a quem ajudou a subir na vida. Obviamente que o Crispim fez várias revelações marcianas, nomeadamente aquela de que a mulher se queixa do tamanho do pénis que Deus lhe deu e que já tinha pensado em fazer uma operação para o aumentar; etc., etc,.
Depois de alguns "eteceteras", o Crispim confessa que, depois de ter durante anos batido na mulher, agora é ele que leva. Felipa Garnel, outra das convidadas, foi a única que tentou ensaiar alguma indignação: "Mas batia-lhe?" A mulher confirma, sem perder a serenidade que desde o início mostrou: "Batia, batia." Crispim justifica-se: "Era o ciúme." Garnel insiste: "Então era o ciúme que batia, não era você?" Era mesmo o "ciúme". Havia demasiados risos e a alegria tanto dele como dela, talvez por se verem na televisão, talvez porque é mesmo assim, acabou com quaisquer outras veleidades e manifestações de estranheza por parte de Felipa Garnel.
Ora aqui está um crime, segundo foi aprovado pela Assembleia da República há mais de um ano, por unanimidade ou perto disso, contra quem considerava não dever a justiça meter-se na esfera privada através da utilização desse instrumento jurídico poderoso que é o crime público. Ao fim e ao cabo, e como ficou provado do pequeno diálogo de Crispim e mulher, pode haver sempre lugar para o perdão e são convívio.
Alguns dos opositores da lei desabafaram mesmo, com aquela tendência para o pagode que a todos e a cada um nos caracteriza a tempos variáveis, que "já não se podia dar um sopapo" em paz e sossego. Neste filme, trivial para alguns, que a lei designa como "violência doméstica", os protagonistas vão para além do universo do duo Ele e Ela e, como já começa a ser do domínio público, estende-se às "boas famílias", ministeriáveis, presidenciáveis de várias organizações, politicamente correctos guardiões da sua vida privada. Aprovada, publicada em "Diário da República" e em vigor, será possível saber até onde tem, para lá de um eventual efeito dissuasor, chegado a mão da lei?
Ana Sá Lopes / Público, 07/07/2001
Ele e Ela - Pão e Rosas
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