MASSIFICAÇÃO E INDÚSTRIA DA CULTURA NO PORTUGAL DOS PEQUENINOS
"O Bacalhau quer alho/ é o melhor tempero/ quem comer alho/fica rijo que nem um pero"
(citação de uma Ode declamada por um jovem bardo alucinado imitador do glorioso Quim
e deitada ao mar num programa intitulado Made in Portugal)
QUIM BARREIROS NA UNIVERSIDADE
1.A RTP costuma exibir um programa de "tops" do "mundo da canção" made in Portugal. O programa, que tem veleidades antropológicas, anda à procura da portugalidade cançonetista e exibe documentos sociais e estéticos merecedores de elevada atenção. Não posso deixar de destacar com todo o enfâse uma ode cujo título exacto desconheço mas que, por questões de referência temática designo por "Bacalhau."
"O Bacalhau" é um hino à "dimensão kitsch" de uma certa imagem da portugalidade. Para quem nunca viu é preciso descrever. Um gaiato, com boa ou má voz pouco importa, apresenta-se de colete ruralizado e de chapéu "popular", numa alusão clara ao inenarrável grande timoneiro do "Pimbismo" nacional. A cria imberbe avança para a pantalha e canta ao som de uma melodia simples e de um ritmo que apela ao trauteio e ao abanar da perninha: "O bacalhau quer alho/ é o melhor tempero/quem comer alho fica rijo que nem um pero." Toda a preocupação da sua performance é imitar a imagem do macho folgazão e brejeiro que faz do sexo uma coisa dúbia e libertina. O que fascina nestas brejeirices é a intrínseca censura ao sexo mesclada com a licenciosidade hipócrita. O "pimbismo" libertino é inofensivo sob o ponto de vista da realização do que promete. É da mesma ordem da pornografia e da obscenidade: mercadoria que serve a libertação das pulsões sem que estas, verdadeiramente, se realizem.
2. O cenário em que a performance se executa é a revelador . Trata-se de um universo mais ou menos familiar ou descontraído de uma certa pequena burguesia fascinada que contempla com olhar cumplice as traquinadas do garoto. Os adultos, bigodudos e babados, dizem de si para si: "O pequeno já parece um homem." Os "manos" e as "manas" (existem alguns adolescentes) até podem ser eventuais frequentadores de uma Universidade, daquelas onde o grande timoneiro da música pimba triunfou. A casa é modesta mas limpa quer de livros quer de sujidade. É o lugar de descanso e de descontracção brejeira de uma família "trabalhadeira" que regressa depois de um dia de trabalho e se compraz num "inocente" trocadilho de conotações sexuais. A televisão faz-lhe o favor: ao ver-se a si própria no écrã, aquela família, exemplo da serena "portugalidade" sente-se, ao mesmo tempo caricaturada e retratada. Isto é: reconhece-se e ri de si mesma. Os trejeitos que ela mima com sinceridade embasbacada são os seus.
3. Made in Portugal já alcançou os palcos das universidades e invade os cantos mais recônditos da vetusta sabedoria académica. Infiltra-se na sisudez solene do elitismo coimbrão e até pousa na insuspeita Aula Magna onde actuaram os cantores que embalaram a geração que se deliciou com Roland Barthes. Imaginemos um concerto protagonizado por um títere do "nacional pimbismo". Já aconteceu precisamente no Auditório da Aula Magna. O bardo afagou o bigode e contemplou a assistência com o olhar matador. Sacou do acordeão. A voz do "povo" ecoou na sala: foi o triunfo do bacalhau brejeiro em pleno universo da academia. Dizia Brecht que a cultura universal foi erguida sobre excrementos humanos. Como já poucos se interessam pela cultura humana, a distinção implícita na frase tornou-se inóqua. O que realmente fede no louvor ao olfacto, primorosamente efectuado na celébre "Ode ao Teu Bacalhau, Maria", já lançava um vago odor em seu redor envolto na celebração hipócrita da própria ideia de cultura. Quando a cultura foi transposta para a fruição basbaque de um público excitado, a voz do Tanhauser logo se deu lugar ao grito do Quim
4. Havia algumas condições prévias a cumprir para que a realização absoluta deste projecto de "democratização cultural" triunfasse. Era urgente que a cultura perdesse a inocência e deixasse de ser uma parte da vida para se tornar mera ideologia. Ou seja, era preciso que se tivesse tornado "cultura. A autonomização do discurso cultural está irremediavelmente ligado à sua degradação. A partir do momento em que a aura foi substituida pela musealização e pelo triunfo da ideia de património, a simples deconstrução do discurso cultural abria a caixa de Pandora do Kitsch: da contemplação solitária da obra de arte à sua aquisição na loja dos trezentos - em imitação asiática - faltava apenas dar um passo que alguns, mais argutos, adivinharam curto. Se a cultura já era apenas um puro discurso sobre a cultura, já só faltava perder a vergonha e assumir com clareza cristalina a evidência: sosseguem académicos ! é possível ler Hoderlin ao som de Quim Barreiros.
5. Perder a vergonha não foi, ainda assim, um acontecimento fácil. Verificadas as condições de massificação generalizada do ensino, cilindrada a classe média, reduzida à proletarização do recibo verde do funcionalismo que vai de carro para o trabalho, o "igualitarismo" ganhou alma e forças para triunfar, democrático e medíocre, triunfante e hegemónico. Voraz, mais arrasador do que nivelador, o gosto das "massas" assumiu-se como um verdadeiro torvelinho que arrastou para dentro de si qualquer veleidade. A competência passou a ser entendida como pretensão ao armanço; toda a presunção ética ou estética foi invectivada de presunção, digna da censura castigadora e democrática lançada por um bigodudo vociferador: "Ó meu, tást'e a armar" (é assim que se deve dizer no mundo do de um certo Made In Portugal).
A mobilidade social, ao contrário do que geralmente se pensa, não foi um processo linear de ascensão em direcção ao topo de uma piramide hierárquica. O que em Portugal (e na Europa) se terá passado não foi um simples fenómeno de novo riquismo. Ao lado dos novos ricos (alguns) deu-se o fenómeno da ascensão social dos "pobres envergonhados" (muitos), uma vasta miscelânea composta pelas pessoas que ainda tinham dinheiro e, também, pelas pessoas que já tinham algum dinheiro. O resultado não foi uma verdadeira generalização da qualidade de vida, ainda que esta tivesse dado alguns passos. Ao universo elitista de um Portugal feito de diferenças seguiu-se o triunfo aparente das falsas igualdades. Na verdade, na verdade, o que é diferente continue a sê-lo ainda que de outra maneira…
4. O triunfo do "pimba", com direito a concerto na Aula Magna e a lugar de destaque na Semanas Académicas, é o espelho desta enorme síntese onde todos os equívocos triunfam. O maior de todos aconteceu quando se passou a legitimar a música "popular" do universo pimba, como se fosse algo trivial e de somenos importância. O novo discurso sobre a cultura seguiu um percurso manhoso, bem adequado a todas as confusões que este fim de século se proporciona. Começou por se dizer que a celebração de uma outra cultura era mero resquício "rançoso" do saudosismo da cultura clássica. O triunfo do prazer (ou de uma certa imagem "publicitária" do prazer) permitiu a generalização da trivialidade. Mais: a trivialidade tornou-se "gira", quase tanto como dantes era "giro" ser-se intelectual e andar com os óculos mergulhados em grossos infólios de capa vermelha. O passo seguinte foi desculpabilizar a trivialidade e sancionar este triunfo deste pseudo-igualitarismo como se fosse uma atitude inteligente. A gargalhada da mulher de Trácia - que se ria dos intelectuais por eles serem distraídos mas também por ela ser ignorante- generalizou-se sob a aparência de uma nova forma de inteligência crítica. Derrubados os últimos pilares da consideração elitista da cultura clássica os passos seguintes foram dados de sopetão: legitimou-se finalmente, a cultura pimba e o Quim pode finalmente lançar uma piscadela de olho aos intelectuais e aos universitários. O triunfo da Revolução saldou-se, ao fim e ao cabo, no triunfo do João Baião.
5. A universidade elistista e serena como um lago estagnado (que já Eça de Queiroz criticava no final do século XIX) não regressa. A Universidade deixou de ser uma torre de marfim para passar a ser uma torre de plástico. Descontados os exageros da massificação generalizada, não voltaremos ao universo segregacionista e sorumbático do universarismo coimbrão.
Na verdade, há décadas que esse universo se esbroava, antecipando em passos de veludo o torvelinho massificador e democrático que se generalizou a partir de meados dos anos oitenta.
Porém, o ensino reflecte a vida de um país com os seus defeitos e qualidades. Se a distracção não é um crime, nem é obrigatório que as chamadas elites passem a vida numa contemplação ensimesmada da cultura clássica, com os olhos em bico sobre sonetos de Camões e de Antero, ou em acesas tertúlias musicais, cinéfilas e culturais, importa lembrar que em Portugal não há verdadeiro direito de escolha. Ao contrário do que se passa nalguns países (onde o mesmo operário que abana a perninha ao som dos diferentes "pimbas" locais pode ser simultâneamente um activo consumidor de livros e de jornais, de concertos e de óperas), em Portugal, o tal igualitarismo tem-se reflectido muito mais num percurso feito de baixo para cima, no sentido inverso aos ponteiros da Inteligência. Dito de outra forma: a música pimba e toda a cultura que gira em seu redor pode ser uma inocente manifestação trivial de insuficiência de gosto quando é encarada como mera pausa, relaxe inofensivo ou, vá lá, distracção da razão Porém, ganha um significado social profundo quando se torna cultura hegemónica e fonte principal de prazer estético para largas camadas da população que nunca tiveram acesso a outros géneros. Quando, ainda por cima, a propalada elite se torna, ela própria, mimo deste tipo de estar e de gostar, numa celeberação eufórica de uma igualdade rasteira, pde-se afirmar que a democratização deu lugar à "mediocratização", uma nova forma de domínio que se estabelece com as mãos limpas de qualquer sangue.
O Quim entrou na Aula Magna. O número de Doutores e de Engenheiros aumentou consideravelmente. Porém, o número de consumidores de jornais e de livros decresceu perigosamente.
6. Há lugar para pensar que possa ser de outra maneira? A Universidade tem de ser, deve ser, um ponto de referência, ou seja um lugar de crítica. O que dana na penetração do universo pimba no mundo da academia é o seu significado social, o sintoma que comporta enquanto corolário de uma massificação feita sem tino nem norte. Não posso acreditar numa Universidade onde as pessoas se preparem para ser meros técnicos competentes, possuidores de um jargão especializado. A Universidade deve criar espaços de resistência e padrões de exigência. A proliferação de Cine Clubes e de teatros, de grupos de música, a entrada dos estudantes nos universos da arte não pode ser uma obrigação no sentido estrito. Todavia, deve ser um acontecimento que decorre com a naturalidade própria de quem se pretende olhar a si mesmo como espaço de resistência à vulgarização. Ou será que é tudo um espelho de vaidades?
Nesse sentido, olho com especial curiosidade a criação do Curso de Língua e Cultura Portuguesa, enquanto pedra de base de uma futura Unidade Científica de Artes e de Letras. Há doenças que só se combatem por contágio. Cedo ou tarde, a revitalização das Universidades (que passa pelo combate à generalização da orgulhosa "cultura politécnica" que tudo permite e que medra em todos os cursos) exige o lançamento de novos anti-vírus. Espalhemo-los sem grandes ilusões, mas conscientes de que, apesar de tudo já se vai sempre um pouco tarde demais.
João Carlos Correia
Universidade da Beira Interior
PS: Alguma fúria que extravasa neste texto ascende ao tempo em que ele foi feito. (1987) Parece haver uma relativização do fenómeno pimba. Mesmo assim, nada que induza ao sosssego.
NAB: Talvez de 1997 e não 1987