No meio do naufrágio os portugueses habituam-se habitualmente, parafraseando V. P. Valente, no espaço comprimido de duas assoalhadas com vista para o ranço. As crises despoletam o coro imenso dos queixumes e lamúrias de quem acreditou, porque era gostoso, em toda a publicidade da vida facilitada, comercial ou política porque… merecemos. A factura está aí, vai continuar a estar e só uma nação junta com um desígnio colectivo pode sair do atoleiro que os sucessivos ajustamentos europeus nos ditam. Se estes três anos foram sufocantes, os próximos vinte ou trinta exigem rigor contínuo – assim o aceitámos no tratado orçamental – e a miragem de um regresso à vida folgada (?) e despesista, individual ou nacional, não passa da grande ilusão que as areias quentes do deserto oferecem aos desesperados.
Não sei nem quero propalar ondas de choque de grupos ou partidos neste espaço onde me permitem verter em escrita os pensamentos da viva vivida a cruzar o país e uma boa parte da Europa. Cheiro aqui e ali, afasto-me para criar perspectiva sobre as imagens focadas e desfocadas e fico-me pelo ensaio sociológico, a análise idiossincrática deste estado de alma (a metáfora alheia ainda é gira) que é ser português. E isso o que é? Politicamente incorrecto vos digo: é pimba e azeiteiro.
Comecemos pela operação Brasil da nossa selecção. O resultado está à vista, mas não os responsáveis e uma análise criteriosa do que se passou. Esconder sob a carpete é nosso; deixar que o tempo seque as mágoas também. Será da falta de currículo do Paulo Bento? Fernando Gomes é só um mestre-de-cerimónias? O egotismo vaidoso do Cristiano Ronaldo? Todos os vaidosos da bola que aceitaram ser seleccionados apesar das mazelas escondidas? Tudo junto, por certo. Mas uma selecção, que representa um país e é símbolo de um povo, é outra coisa, mais que um tacho, mordomias e oportunidades, é outra coisa. É o imaginário colectivo que nela se revê, é a esperança de um pouco de sal na vida, é o chuta para lá de tanto cinzentismo de palavras como sentenças porque… existimos.
Na passada quinta-feira conduzia o carro onde quatro UHF seguiam o rumo de Castro Daire. Pela zona de Tondela ouvimos o primeiro golo de Portugal e um locutor da TSF que dá pelo nome Pateiro entoou uma ária abrasileirada ao momento, e não se calava. Não sei classificar o que ouvi e o porquê. Rimos a bom rir, derrotados.
Há catedráticos da bola, aqueles que nos querem impingir a visualização antecipada das imagens ou o retrato acabado que não previram, imerso em floreados – felizmente o futebol tem rasgos geniais, que usam e abusam do chavão. Ouvi, a propósito de um remate qualquer certeiro, o Freitas Lobo da SporTV enumerar uns quatro ou cinco qualificativos sobre o chuto e finalizar que o tiro às redes tinha "moral". Terá? Na comédia do futebol vale.
Foi pífio o nosso desempenho para não lhe chamar miserável. E, não fosse a rebelião que infectou a equipa do Gana, teríamos compreendido que o melhor jogador do mundo é um galardão que deriva de uma votação num tempo exacto e que é preciso prová-lo todos os dias em campo para o merecer e manter. Ou então confessar: não estou capaz.
Quando o António José Seguro repetiu por três ou quatro vezes, na noite das eleições europeias, que "era o PS quem tinha ganho", achei que havia ali algo muito estranho. De quem era a dúvida? Estaria expressa na ausência de telefonemas de apoio interno? Só podia ser.
Uma vitória é uma vitória, é certo, mas há umas e há outras. Viu-se nos dias seguintes como as luminárias socialistas levaram a sério "a vitória do Tozé". Porque com um governo de austeridade além da austeridade, uma vitória de 31,46% sobre uma abstenção de 66,16% é uma derrota a prazo – sou dos que acreditam que por este caminho Passos Coelho ganharia as próximas legislativas sem grande sobressalto.
Se aduzirmos o aparecimento "caído do céu" do partido MPT, o esvaziamento do BE e a primeira graça eleitoral do LIVRE, o PS teve uma vitória às damas entre reformados.
Ouvir depois as defesas, a tese, o enunciado dos estatutos, a casca de banana das primárias (uma casca onde todos podem cair, incluindo o autor), o normal funcionamento das instituições partidárias (que frase tão jeitosa) que deriva de uma maioria em congresso com percentagem à Coreia do Norte, é prolongar o azeite em que a nossa política se afunda há demasiado tempo, um tempo pimba.
Escrevi aqui neste espaço que António José Seguro, quando assumiu a liderança do PS (que na altura ninguém queria, é certo) devia em primeiro lugar pedir desculpas ao país por seis anos de deriva delinquente, o estádio de bancarrota que nos ofereceu José Sócrates. Mas Tozé não podia dizer algo tão forte nesse tempo de chegada ao top partidário; manda dizê-lo quando vale tudo pelo lugar de líder. A bancada parlamentar comê-lo-ia vivo, ameaça que viria a lume de tempos a tempos. Sem ideias além "de propostas", um saco cheio de "propostas", Seguro viveu inseguro com uma amante parlamentar infiel à trela.
Quando Henrique Neto, progenitor do salvífico Seguro, proclamou em 2011 que ele representava a esquerda do partido confirmei que estas confissões de mais ou menos esquerda são mesmo profissões de fé: engole quem quer, são palavras que rapidamente serão esquecidas. Porque se Seguro representava a esquerda do PS, por oposição à prática de direita do governo socialista derrotado, teremos como adquirido que naquele partido ser de esquerda é estar calado durante os seis anos de foguetório que durou a incursão socretista ou socretina (tudo menos socrática, por respeito ao grego filósofo), sentado na última fila da bancada parlamentar. Se a esquerda do PS já definhou a este ponto estamos aviados.
Atentos ao panorama e à baboseira, não é de estranhar que os figurões desse mal fadado tempo de governação se posicionem na procissão de António Costa, junto com muitos históricos e fundadores – voltar ao poder é preciso, de forma segura. A Idade Média Moderna prossegue e o regime democrático entretém a populaça.
Se o país precisa do rasgo político de António Costa, uma alternativa, um verdadeiro licenciado com experiência no terreno das decisões – ser chefe do município lisboeta é gerir uma das maiores empresas nacionais -, se a nação carece de um debate político denso e sério, a fiada de devotos que segura o andor deste António deixa múltiplas e profundas interrogações. As clientelas partidárias são o pior que o regime nos trouxe, parasitas e vorazes. E sem elas não há líder que resista. O bem da nação ou o bem do partido?
A quinta-essência do pimba azeiteiro repete-se há largos meses nas programações de fim-de-semana dos três canais de TV. Já foi brejeiro, já foi pimba, agora é música da loja do chinês. Um sucedâneo de artistas sem arte e canções sem inspiração, tudo cozinhado num mesmo e único ritmo, com duas bailarinas descascadas aos pulinhos e/ou bailarinos musculados dengosos, tudo sem ponta de graça ou diferença, onde o português já é brasilês, semana após semana. Isto envergonha, a classe profissional, a história da música portuguesa, uma nação que não se leva a sério, que não sabe exigir. É lixo, repetitivo, lixo não reciclável. Não há desculpa nem definição para esta miséria cultural. Assim se bate no fundo. Tudo isto está interligado, porque isto é "ser português".
António Manuel Ribeiro - 02-07-2014 09:11
• 02-07-2014 •
Estar presente
por António Manuel Ribeiro
(Músico e Autor)