Entrevista a João Lança
O filho da Linda de Suza canta por sua conta e risco
Veio de França há cinco anos com a mala cheia de sonhos, já lançou dois discos em Portugal, mas não tem tido muita sorte. Na verdade, ser emigrante e filho da Linda de Suza tem ajudado pouco. João Lança conta o seu trajecto em terras lusas, sem esconder nada. Mesmo aquele episódio em que saiu a meio do Festival da Canção: “O que é que eu estou aqui a fazer?”. Uma entrevista com um homem que merece vencer. Imperdível
- Quando é que começou a estudar música?
Eu comecei mesmo a gostar de música com 14 anos, quando tive o piano. Eu disse para a minha mãe que gostava de ter um piano. A minha mãe disse-me na altura: "mas não sabes tocar…" Eu argumentei que precisava do piano. E tive-o. Comecei a tocar sozinho, depois tive algumas aulas e pus-me a compor. Sou mais melodista do que músico, porque não sou muito de partituras. Como eu trabalhei em estúdio lá em Paris, vi o que era ser músico mesmo. Aqueles tubarões do estúdio é que são os músicos.
- Mas então gostava de fazer melodias…
Ah… sim, sim. E foi daí que nasceu a primeira música que eu fiz. Quem me deu a oportunidade foi, naquela altura, o produtor da minha mãe, que gostou muito. Nunca ia apresentar as músicas à minha mãe. Ia sempre primeiro ter com o produtor, para ver se ele gostava, porque se não ia ser influenciado pela minha mãe. Era lógico: "Mas é o meu filho… ai que giro!" Ia logo aceitar e eu não me iria sentir realizado, nunca iria saber se foi por mim ou se pelo facto de ser filho dela.
- E ele era muito duro nas críticas?
Ele? Puu… Quantas vezes ele disse: "Estás a brincar comigo. Isso nem pensar". Aí dava-me vontade de dizer: "Eh pá, mas eu sou o filho dela". Mas não. Foi óptimo. Era o que ele dizia: é um investimento tão grande que uma pessoa não se pode permitir a colocar tudo e mais alguma coisa num disco. Tinha de haver um conceito. Naquela altura, um álbum custava 600 mil francos, o que equivalia a 20 mil contos. Há 15, 16 anos atrás, era muito dinheiro numa produção. Eram três meses de estúdio. Cada hora de estúdio custava 45 contos. Também era outro mercado. De cada vez que ela vendia um álbum eram 500 mil, 600 mil. Era impressionante.
- Quando é começou a cantar?
Quando comecei a ter a ideia da música para o filme, tinha então 18 anos. Fazer a música e depois gravá-la ainda demorou o seu tempo. Aos 18 anos, gravei a canção, comigo a cantar. Mas não era aquilo que eu queria. Preferia ficar atrás do palco, a compor. Era o que me dava mais prazer. Depois, fizemos uma produção de um disco em que compus quatro canções. Mas atenção: para ter lá quatro músicas, apresentei 10 ou 12.
- Mesmo assim, não é nada mau. Parece-me uma boa média.
Vá lá. E nessas quatro canções, ele disse-me assim: "por que é que não fazes um duo com a tua mãe?" "Eu?! Cantar com a minha mãe? Ai, meu Deus… Estás a brincar." Mas depois pensei e lá cantámos. E fizemos um dueto, o "Dit Moi Porquoi", que em português significa "diz-me porquê". Fizemos a tradução em português com as letras de Mário Raínho e José Luís Gordo. Comecei obrigatoriamente a fazer espectáculos. Tinham de me empurrar para eu subir ao palco. Tremia, tremia. Graças a Deus, naquela altura tínhamos as salas cheias. Quantas vezes não me enganei (risos), por medo. Ela via-me a transpirar. O início foi terrível, terrível. Aprendi muito com ela a estar em palco. Ao fim de alguns meses, já estava mais solto, já me permitia certas palhaçadas. Faço as coisas com seriedade, mas raramente sou sério. Uma pessoa não deve levar as coisas muito a sério. O que é que fazemos, afinal? É preciso relativizar isso tudo. Como a minha mãe dizia sempre: só vendemos vento e um bocadinho de sentimento, de bem-estar às pessoas durante um período curto de tempo. Foi assim que nasceu em mim o bichinho.
- Mas cantou então durante algum tempo com a sua mãe?
Ainda cantei durante dois anos com ela.
- E estreou-se a solo lá em França?
Sozinho não. Foi sempre com ela. Depois lancei, aliás, lançámos - foi ela até que produziu – um 45 rotações.
- Já não se produzem 45 rotações há muito tempo em Portugal…
Também fui enganado. Lá também não se faziam… (risos)
- Pois.
Foi há dez anos. Fiz um 45 rotações e fui a um único programa de televisão com aquele disco. O produtor foi um vigarista. Fechou tudo e foi-se embora. Enfim.
-Fugiu?
Fugiu. O homem fugiu. (risos) Depois saturei-me de estar sempre debaixo das asas da minha mãe. Tive vontade de fugir.
- Foi por isso que veio para Portugal?
Sim. Comecei, ainda em França, a compor só para mim, com algumas canções escritas em português.
- Teve dificuldade com a língua?
Muita dificuldade mesmo. Mas como eu cantava para a comunidade portuguesa, nos restaurantes… e quando eu dizia isto à minha mãe? Ela ficava fula.
- Por cantar em restaurantes?
Fula… bem, estou a exagerar um bocadinho. Ela achava que eu não devia cantar directamente assim. Mas foi o que eu lhe disse: "Eu tenho de aprender o meu trabalho". Mas voltando ao português: ninguém reparava nos erros que eu podia fazer. Porque os outros faziam os mesmos erros do que eu. Por exemplo, havia uma canção em que dizia "êrói" em vez de herói. Mas toda a gente dizia igual. Eles não estranhavam a minha pronúncia. Na altura, tinha o nome artístico de Janot. Por baixo, nos cartazes, às vezes escreviam "filho da Linda de Suza". Quando isso acontecia, os restaurantes enchiam.
- Por causa da sua mãe…
Nos restaurantes, eu quase não falava com as pessoas. Porque pensava que bastava aquilo que eu escrevia. Mas não. Nos restaurantes, é complicadíssimo. As pessoas a comerem e eu a cantar, a querer que batam palmas. Aprendi, aprendi, aprendi. Temos de ir buscá-los. Temos de ir à luta. Não basta simplesmente ficar atrás do microfone. Não é isso o que as pessoas querem. Querem mais. Não se resume a estar a cantar "lá lá lá lá lá lá". Para isso liga-se a MTV.
- Durante quanto tempo é que andou nessa vida dos restaurantes?
Andei à vontade durante dois anos. Depois, conheci uma pessoa que quis que eu gravasse cá em Portugal. Só que era para editoras como a Lusogram…
-Editoras desconhecidas?
Pois. E eu disse assim: "Já que conhece tanta gente, ponha- me numa multinacional, caramba". Eu não sabia o que se passava em Portugal. Sabia lá quem era o Rui Veloso ou o Pedro Abrunhosa. Em Paris quem os conhece? O grande público francês não os conhece. Na comunidade portuguesa, sim, mas são os Tonys Carreiras, as Agathas… Foi daí que eu conheci esses cantores. Eu tinha a ideia de não fazer como os outros. Imagine as associações de portugueses em França. É a Sagres, as bailarinas no palco… fui sempre ao contrário dos outros: só voz e piano. Os portugueses iam ao baile e apanhavam piano e voz. Era giro, mas só havia meia dúzia de pessoas que apreciavam. Os outros lá atrás gritavam: "Eh pá, canta a Mala de Cartão!" (risos). Que vergonha eu apanhava. Mas seguia até ao fim. Fui expandindo o meu espectáculozinho. Houve um dia em que dei um espectáculo sem referência ao nome da minha mãe e vieram mais de mil pessoas para me ver. Foi gratificante. Até que uma vez o Carlos Pinto, da Sony, ouviu uma cassete minha, sem saber quem eu era. Só no fim de termos assinado o contrato é que lhe disse quem era.
-Em que ano é que lançou o seu primeiro disco em Portugal?
Foi há cinco anos.
- Como é que se chamava o álbum?
"Quem Será."
- Todo em português?
Todo em português.
- E nessa altura veio para cá viver?
Na altura da gravação, andava cá e lá. Mas decidi-me por Portugal.
- Esse seu primeiro álbum foi muito discreto.
Completamente. A própria Sony não fez promoção. Estive em apenas dois programas de televisão.
- Vendeu pouco?
Vendemos 1500 CD’s. Não foi assim tão mau. Mas só que vinha de França e punha-me a fazer comparações com a minha mãe… Só que não tem nada a ver, logicamente. Mas fiquei muito desiludido.
- Com a falta de promoção?
Falta de promoção e empenho da Sony. Depois percebi que eles, enquanto multinacional, precisavam de uma quota de artistas portugueses e eu cheguei em boa altura, por isso é que assinámos tão facilmente o contrato. Agora sei isso. Mesmo ao nível da produção, eles não apostaram em força na qualidade do vídeo. Mas eu não sabia o que era a música popular em Portugal.
- Os cantores que frequentam a comunidade portuguesa em França são aqueles que têm sucesso também em Portugal.
Sim. Ágatha, Tony Carreira, Luís Filipe Reis…
-O Emanuel…
O Emanuel, o… como é que ele se chama… aquele do burrito… o Fernando Correia Marques, o Axel, pessoas assim. Mas para mim
desde que a música seja bem feita… Em França a variedade é muito mais aberta, mas a música é feita sempre com qualidade. Podemos gostar ou não gostar, mas a qualidade está lá, porque os músicos de estúdio são os mesmos. Em Portugal, há mundos completamente separados.
- Lançou o disco cá em Portugal e foi fazendo alguns espectáculos.
Fiz alguns espectáculos, sim. Alguns. Não foram assim muitos, muitos, muitos. Não sou pessoa de me gabar. É muito fácil saber quando há sucesso ou não. A prova é que vou na rua e ninguém me conhece. É preciso relativizar.
- Entretanto, lançou um trabalho mais recentemente.
Sim.
- Tem um título francês, não é?
Não, não. Chama-se "Não Pares de Sonhar". Foi feito com a Ovação. Eu tinha assinado um contrato com a Sony para cinco anos e três álbuns, mas quis vir-me embora. Eu disse: "vou fazer outro álbum e vocês vão fazer a mesma coisa, não vale a pena". E eles não me deram grande perspectiva de futuro. Entretanto, entre os dois discos, também participei no Festival da Canção. Nesse ano eles foram ter com as editoras e a Sony propôs-me entrar no festival.
- Em que ano?
Foi há três anos, quando a Inês Santos ganhou, com uma canção do José Cid. Eu participei com uma música composta por mim e com letra do Pedro Malaquias. Eu disse ao João Megre, que era o A.R. da Sony…
- O A.R.?
O director artístico da Sony. Eu disse-lhe: "Quero trabalhar com o Pedro Malaquias". E ele: "Ah, não. Olha que ele não vai querer trabalhar contigo. Ele trabalha com o Paulo Gonzo…" Eu pensei: "Oh… o caneco". Liguei directamente para a TSF: "Queria falar com o Pedro Malaquias se faz favor" – "Mas quem fala?" – "João Megre, da Sony" (risos). Ele veio ao telefone: "Sim" – "Olhe, eu não sou o João Megre" – "Ah pois, eu não lhe reconheci a voz". Expliquei-lhe a situação toda. Mas sem lhe dizer quem eu era, simplesmente disse-lhe que era um artista. Fiquei uma hora ao telefone com ele. No fim já era: "Vem cá beber umas cervejas, temos aqui um barzinho na TSF". Fui ter com ele e estivemos três horas a conversar, entre imperiais.
- O Pedro Malaquias faz letras para canções?
Sim. Tudo o que é música do Paulo Gonzo, é o Pedro Malaquias que escreve as letras. E eu justamente queria distinguir-me. Só a imagem de ser filho da Linda de Suza, ser emigrante, dava- me uma conotação pimba. Foi do que me apercebi em Portugal naquela altura. Nem sei o que é isso, essa descriminação. Eu sou muito mais simples do que isso.
- Em Portugal há algum preconceito.
Completamente. Mas simplesmente gostei da maneira do Pedro Malaquias escrever quando ouvi os álbuns do Paulo Gonzo (que o João Megre, da Sony, me deu a ouvir). E foi daí que ele começou a escrever canções para mim.
- Foi o Pedro Malaquias que fez as letras do seu último álbum?
Fez a maioria das letras. Para o Festival da Canção, fizemos uma canção. Eu disse-lhe que queria uma ideia de canção larga: nascer aqui ou além, o que interessa? Mas não foi bem aceite. Ganhou uma música com cavaquinhos, bem portuguesa. Nós tínhamos uma ideia mais positiva, mais humanista. Fiquei em último lugar. Ena pá. Estava na mesa e durante as pontuações não houve por uma vez uma câmara a apontar para mim. Nem uma. Era tudo nos outros. Há clãs. E eu nunca fiz parte dos clãs. Nem dos elitistas nem dos pimbas. Sempre estive no meio. Houve uma altura em que eu disse "o que é que eu estou aqui a fazer?" e fui-me embora. O pessoal da produção avisou-me que não podia sair, mas eu disse: "Não posso? Quem é que me vai impedir? Isso é que era bom. Vou-me embora, não estou aqui a fazer nada. Tchauzinho". E fui-me embora. Depois soube que a minha canção foi a preferida do Paulo de Carvalho, que fazia parte do Júri, mas ele nem um ponto me deu. Já estava tudo combinado.
- Foi uma experiência complicada.
Sim. Quem me deu muita força foi o Pedro Malaquias. Ele telefonou-me: "João, ganhámos, pá! Ganhámos". E eu: "És doido. Pára com isso!" E ele: "Mas tu não vês que ganhámos. Marcaste a tua diferença. Não foste como eles. Tens de continuar. Tens de ser tu próprio". Não tive nenhum apoio da Sony. Eles já sabiam que eu nunca iria ganhar. Uma semana depois informei-os de que me ia embora.
- E depois surgiu a Ovação…
Não quis ir ter com multinacionais.
- A Ovação tem alguns artistas conhecidos.
Sim, mas sinceramente também não fazem grandes apostas. Nesse disco quis letras do Fernando Girão. Fui vê-lo. Disseram- me: "O Fernando Girão? Alguma vez…" Ainda por cima eu faço sempre as minhas músicas e ele faz letra e música. Quando fui vê-lo, ele foi extraordinário. Abriu-me a porta sem me conhecer. Só ao fim de uma hora, é que ele perguntou-me, com aquela voz rouca: "Eh pá, mas agora é que estou a ver. Tu não fazes música pimba, pois não?" (risos) E eu: "Não sei a que é que chamas música pimba."
- Imagino que ele tenha pensado nesse momento: "Sim, então é porque fazes mesmo música pimba".
De repente agarro na viola dele, toco duas ou três coisas e ele disse-me: "Eh pá, tu és dos meus, pá. Fantástico. Vamos iniciar isso." Depois a mulher dele entrou na sala e foi ela que me reconheceu: "Tu não és o filho da…?" O Fernando Girão levanta-se, eu enfio-me no sofá e ele: "És um gentleman. A partir de agora, irmãos". Ele adorou a minha atitude e deu-lhe ainda mais prazer colaborar no meu disco. Fez duas letras para o álbum. O Pedro Malaquias fez sete e a Célia Lawson fez uma, o "Não Pares de Sonhar". Quis que fosse uma mulher a escrever.
- Mas o segundo álbum também não teve muita visibilidade.
Não. Também não houve muita divulgação. Não sei.
- Tem andado numa maré de azar.
Não sei. Ou é a editora que não soube promovê-lo ou o álbum não agrada ao público…
- Quando é que foi lançado?
No ano passado. Fui à Praça da Alegria. O Goucha gosta muito de mim, da minha maneira de estar. Mas a Ovação não fez grande promoção. Afinal, não sei o que será melhor. Não sei se as editoras pequeninas, como a Espacial e a Vidisco, não trabalharão melhor com os artistas nacionais.
- E agora? Como é que vai ser?
Não sei. Encontrei o Carlos [Alfaiate].
- Como é que se conheceram?
Recebi um e-mail com o novo contacto do António Calvário, que era o Carlos Alfaiate.
- Nunca tinha tido um manager?
Um manager propriamente dito, nunca tive. Procurei. Fui ver o manager da Adelaide Ferreira, outros managers, empresas de agenciamento. Mas para eles, é preciso ter bagagem. São todos os mesmos. Eu não tenho background. Os outros vêm todos dos mesmos sítios: o Luís Represas é como o Jorge Palma. Eu, de onde venho? Sou um emigrante. Mas também não me dou bem com aqueles empresários desses artistas muito populares. Não me enquadro. Então, liguei ao Carlos Alfaiate. Agora, a ideia é preparar um novo disco.
- Já tem editora?
Sinceramente, não sei se vou continuar na Ovação. Não me vejo na mesma editora.
- Mas não está arrependido de ter vindo para Portugal?
Não, não. Sinto-me mesmo bem.
Micael Pereira / Clix, 2001/2002
http://reporter.clix.pt/musica/66550.html