segunda-feira, 20 de junho de 2011

Prolegómenos

PROLEGÓMENOS PARA UMA ANÁLISE SÉRIA DA TENDÊNCIA MUSICAL POPULARMENTE CONHECIDA COMO PIMBA

O que é a música dita pimba? E será que o pimba existe? E quais as suas origens musicais? E porque é que há teses universitárias sobre o fenómeno?

Nenhum dos artistas que geralmente é encaixado na categoria pimba se reconhece como pertencendo a esta «gaveta». É natural, já que o termo - popularizado por uma reportagem da TVI e inspirado no tema de Emanuel «Pimba, Pimba» - é utilizado pelas elites intelectuais e bem-pensantes como pejorativo, achincalhante e digno de pena. Um pouco à semelhança do «brega» no Brasil ou do termo «redneck» aplicado aos «saloios» do sul dos Estados Unidos. Para as elites, pimba significa «piroso», «foleiro», «xunga» e está um pouco abaixo do kitsch na hierarquia do bom-gosto (o kitsch será uma espécie de mau-gosto com estilo enquanto o pimba não passa de mau-gosto absoluto, o grau zero da baixa-cultura). E os cantores - apesar de numa primeira fase aceitarem em boa parte a designação (houve até uma revista chamada «Pimba») - foram renegando e afastando-se gradualmente do epíteto, preferindo expressões como «música ligeira» ou «música popular». Outra razão, óbvia, para a negação é que no caldeirão pimba se começaram a meter produtos musicais diferentes: desde girls-bands ao Zé Cabra, da tentativa de euro-pop que são os Santamaria aos cantores românticos como Tony Carreira ou Toy. Mas a palavra ficou, colada à música mas também a programas de televisão, a livros (literatura-light=literatura-pimba), à política, etc.

A música dita pimba nasce nas editoras independentes nacionais - Discossete, Vidisco, Espacial, Ovação... -, muitas delas com experiência na música distribuída, via cassetes baratas, em feiras e bombas-de-gasolina, um circuito à parte, marginal, das lojas de discos dos grandes centros urbanos. Um circuito dirigido preferencialmente ao meio rural (e aos emigrantes que no Verão voltam às suas aldeias de origem). E é uma música de produção rápida e barata: em entrevista ao BLITZ, há nove anos, Emanuel (aka Américo Monteiro), dizia que no seu moderno estúdio da Pontinha se produziam quatro álbuns por mês. Um por semana, portanto. E com a proliferação dos estúdios digitais, centenas e centenas de discos de concepção rápida - porque recorrendo bastante a computadores, sintetizadores, programações, caixas-de-ritmos... - foram sendo criados (ou re-criados) nos últimos anos. E escrevo re-criados porque, como também dizia Emanuel nessa entrevista, «há dez ou onze tipos a a fazer canções e depois há dois mil a fazer versões» (das canções de maior sucesso, entenda-se). E potencialmente barata também porque na sua transposição para o formato «ao vivo», os artistas oferecem várias modalidades aos organizadores locais de concertos: por exemplo, «o artista com banda e duas bailarinas», «em playback e com duas bailarinas», «sozinho em playback».

E a música, perguntar-se-á?... As inspirações da música dita pimba vêm de todo o lado: da pop, do euro-disco, do brega brasileiro, da música romântica francesa, brasileira, italiana, do nacional-cançonetismo dos anos 60 e 70 (Tonicha, José Cid, Paulo Alexandre...) e, em muitíssimos casos, da música tradicional portuguesa. E é aqui que entra - para contrapor aos instrumentos electrónicos - o acordeão. O acordeão que, com a emergência dos ranchos folclóricos (SNI/António Ferro/Salazar), arrasou à sua passagem muitos instrumentos (e tocadores) tradicionais mas que se mantém, no dito pimba, como resquício de «instrumento tradicional», tanto em Portugal como nas comunidades emigrantes no estrangeiro. A este propósito, Sophie Chevalier (no texto «Folclore e Tradição Musical dos Portugueses na Região de Paris», incluído no livro «Vozes do Povo», ed. Celta) refere que nos ranchos folclóricos portugueses da capital francesa «é o acordeão o instrumento mais importante... fala-se mesmo em tirania dos acordeões».

O acordeão, aliás, marca uma certa fronteira entre os artistas, estando os que o usam (Quim Barreiros, Emanuel...) mais próximos dos ritmos, melodias e temas tradicionais portugueses. Não deixa de ser curioso que o musicólogo português José Alberto Sardinha tenha dito numa entrevista recente ao jornal Expresso: «Há um fenómeno que merecia um grande estudo que é o caso do Quim Barreiros: um cantor tradicional que herdou toda a tradição da música minhota e que cria de acordo com os parâmetros que lhe foram fornecidos pela tradição. Só que ainda ninguém reparou nisso... Ele tem criações onde, por exemplo, se identifica perfeitamente a estrutura musical do malhão do Norte que ele recriou. Com letras, em parte, fornecidas pela tradição. Aquela do "bacalhau", se se for ao Leite de Vasconcelos, está lá, é uma quadra popular do fim do século XIX!». E Sardinha não está sozinho na sua curiosidade científica sobre o fenómeno. Recentemente, Francisco Marques apresentou uma tese de mestrado na Universidade de Beja subordinada ao tema «O Fenómeno Musical "Pimba" - O caso Emanuel» (tese que será editada em livro brevemente).

O «bacalhau» de que fala Sardinha enquadra-se na corrente brejeira - que sempre existiu na literatura e na tradição portuguesas, de Gil Vicente a Bocage, do contador de anedotas Canty a Herman José - que é uma das marcas principais da música dita pimba. Mas há muitos outros temas recorrentes nas letras: o amor (dos amantes, da mãe, dos filhos), o divórcio, os acidentes na estrada, a dependência de drogas ou, em alguns casos, as saudades da aldeia - uma terra vista como Paraíso Perdido pelos emigrantes e migrantes e à qual hão-de regressar um dia. E põe-se aqui uma questão paralela. Os consumidores do chamado pimba são vistos pelas elites como «campónios», «iletrados» ou «suburbanos», mas são as elites que o têm acarinhado e alimentado ao longo dos últimos anos. Semanas académicas nas universidades (cujas Tunas aderem ao mesmo reportório e espírito), rádios locais e nacionais, programas de televisão, jornais e revistas de referência que não passam um Verão sem fazer uma reportagem sobre os cantores dessa área, têm legitimado o fenómeno.

Por outro lado, a proliferação de cantores e cantoras da mesma área - juntamente com o eventual recurso ao playback nos espectáculos e a generalização da ideia de que os estúdios podem fazer milagres com uma voz, por muito desafinada que seja - contribuem para criar a ilusão de que qualquer pessoa pode vir a ser cantor. E daí até às filas de centenas de pessoas a prestar provas de admissão em programas como «Ídolos» ou «Chuva de Estrelas», vai um pequeno passo.

Três histórias (e um texto recuperado do BLITZ acerca da chamada música pimba, publicado em Outubro de 2004):

1 - Há muitos anos, em conversa com Ricardo Camacho (produtor e teclista dos Sétima Legião para além de médico e um dos mais respeitados investigadores nacionais e internacionais no estudo da SIDA), ele contou-me que, durante um congresso médico em Istambul, aproveitou para comprar umas cassetes de música turca a que ele achava alguma graça. Só alguns anos depois ele descobriu que aquelas cassetes eram de uma espécie de pimba turco e que a boa música da Turquia era outra.

2 - Há um ano, numa entrevista com Zeca Baleiro, este fantástico cantor e compositor brasileiro disse-me que pensava gravar um álbum só com versões de temas de artistas portugueses respeitados - Sérgio Godinho, Jorge Palma, Rui Veloso, Zeca Afonso, Fausto, Vitorino, Pedro Abrunhosa e Armando Teixeira -, acrescentando depois, surpreendentemente, que também gostava de... Ruth Marlene.

3 - Também o ano passado, em Coimbra, num debate sobre folk e música tradicional, Mário Correia (do Intercéltico de Sendim e da editora e centro Sons da Terra) contou que num encontro de gaitas-de-foles, um gaiteiro veterano tocou um tema do Quim Barreiros enquanto outro, jovem, tocou o «Smells Like Teen Spirit», dos Nirvana, e que aquilo soou muito bem. Perguntei-lhe se essas versões em gaitas-de-foles poderiam ser consideradas música tradicional. O Mário - sabedor destas coisas como há poucos - respondeu: «Se esses temas forem incorporados no reportório de vários gaiteiros, vais ver que daqui por cem anos vão ser considerados música tradicional».

António Pires / Blog Raízes e Antenas, 21/07/2006